— Tenho 13 parafusos neste braço esquerdo — mostra Suedy José Rodrigues da Silva, o Barata, 68 anos, ex-jóquei profissional.
O começo da carreira, que teve início em Rio Grande, em 1965, foi marcado pelo azar. Na primeira corrida, o cavalo Faixa de Ouro, que conduzia, empinou e acertou com os cascos o próprio competidor, que caiu e fraturou a clavícula. Após 40 dias, partiu para a estreia em um páreo de 500 metros. Conforme recorda, montava a égua Menina e perdeu o equilíbrio em algum momento, resultando em nova queda e outra clavícula quebrada. Foram as primeiras de diversas fraturas, em uma trajetória que ilustra com precisão a dura vida dos jóqueis em Porto Alegre. As lesões e a constante luta para manter o peso são duas dificuldades da profissão. Ganhar pouco e ter de acordar no meio da madrugada para exercitar os cavalos podem ser incluídas no pacote.
— Tem de levantar cedo, ser dedicado e ter o peso adequado — compartilha o ex-jóquei, hoje treinador, salientando que o ideal para os competidores é manter-se abaixo dos 55 quilos.
Em seus tempos de montaria na Capital, Barata venceu o Grande Prêmio Bento Gonçalves (em 1979) e o Protetora do Turfe (em três ocasiões), duas das principais disputas desse esporte no Rio Grande do Sul. No Hipódromo do Cristal, atualmente, cerca de 20 jóqueis montam em cavalos de corrida. As reuniões turfísticas, como são chamadas as datas com provas, ocorrem às quintas-feiras e nas manhãs do primeiro domingo de cada mês. A entrada no local para o público é gratuita.
A rotina de trabalho de quem escolhe essa profissão inclui exercícios com os cavalos, em geral, das 6h às 10h. As competições costumam ser mais exaustivas. Com raras exceções, o jóquei precisa correr vários páreos no mesmo dia para conseguir uma premiação razoável, segundo os praticantes ouvidos pela reportagem.
— O vencedor fica com 10% da premiação que varia do primeiro ao quinto lugar. Fora isso, tem a montaria, mas o que rende algum dinheiro mesmo é ganhar as provas — observa Barata.
As corridas de cavalos são uma atividade entranhada na história da cidade. O turfe já foi, inclusive, o esporte mais popular de Porto Alegre — quase o que o futebol representa hoje. Quando Grêmio e Inter foram fundados, em 1903 e 1909, respectivamente, os principais jornais concediam em suas páginas amplo espaço dedicado ao tema, além das competições de remo, igualmente bastante apreciado pela população.
As primeiras disputas de turfe eram realizadas de forma informal nas áreas mais distantes da região central da cidade e também onde hoje é a Redenção, cem anos atrás conhecida como Campos da Várzea. Foi o interesse das pessoas que fez com que esse esporte ganhasse locais específicos para sua prática.
Em 1877, na região do bairro Santana, foi construído o Hipódromo Porto-Alegrense, rebatizado três anos depois de Prado Boa Vista. Em 1881, a Capital ganhou o Prado Rio-Grandense (que funcionou até 1909 no Menino Deus) e o Prado Navegantes (em operação até 1906 no 4º Distrito). Já o Prado Independência, na altura do Parcão, foi aberto em 1894. Tornou-se o preferido dos espectadores pela facilidade para se acessar o local, inclusive com oferta de bondes da Carris. Rebatizado como Moinhos de Vento, tornou-se referência até o aparecimento do atual Hipódromo do Cristal — cuja construção foi tombada pelo Patrimônio Histórico e Arquitetônico do município em 2005.
— Porto Alegre está inserida em um Estado que se desenvolveu em torno da agricultura e da pecuária, incluindo aí o manejo do gado e a criação de mulas e cavalos. O cavalo também foi uma força-motriz para o desenvolvimento inicial dos transportes modernos, puxando os bondes — contextualiza o professor Charles Monteiro, do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS).
Já os hipódromos, segundo Monteiro, que é autor do livro Breve História de Porto Alegre, serviam de sede de rituais que valorizavam esses animais:
— Os eventos nos hipódromos eram realizados com cavalos de várias raças e locais. A cancha reta, que inicialmente ocorria no Parque Farroupilha (Redenção), tornou-se um ritual extremamente importante. Mas que começou a perder importância após a década de 1920, quando outras modalidades esportivas cresceram em popularidade, entre elas, o futebol.
Na era de ouro do turfe, Porto Alegre chegou a receber a realeza para acompanhar páreos. Em 1885, a Princesa Isabel, que assinaria a Lei Áurea três anos depois, veio com o marido, Conde D'Eu. O casal visitou o Hospital Psiquiátrico São Pedro e aproveitou para assistir a uma reunião turfística, acompanhado do presidente da Província, José Júlio de Barros. Já o Príncipe de Ajudá, dirigente tribal que governou a região da fortaleza de São João Batista de Ajudá, na Costa do Ouro (atual República de Gana), exilou-se no Estado a partir de 1862. Rebatizado no Brasil de José Custódio Joaquim de Almeida, ele viveu em Rio Grande, Bagé e, em Porto Alegre, onde chegou em 1901, estabeleceu residência à Rua Lopo Gonçalves, na Cidade Baixa, criando e mantendo na região uma coudelaria (estabelecimento voltado para treinamentos de cavalos, especialmente os de corrida).
Relata o livro Jockey Club - Histórias de Porto Alegre, organizado por Mário Rozano e Ricardo Franco da Fonseca:
"O príncipe Custódio não falava bem o português, mas expressava-se fluentemente em inglês e francês. Teve oito filhos, três homens e cinco mulheres, e vários empregados. (...) A festa de seus cem anos foi a maior que a Cidade Baixa já vira. Durante os festejos, mostrando vitalidade, o Príncipe de Ajudá montou um cavalo sem receber qualquer ajuda. Viveu 34 anos na Capital, onde se tornou popular. Morreu no dia 28 de maio de 1935, aos 104 anos de idade."
Consta que o príncipe não perdia uma reunião turfística. Prestigiava seus cavalos — e os jóqueis que os conduziam — nas competições realizadas sobretudo no Prado Independência. Testemunhou, desde os tempos mais antigos, a rotina de superação dos montadores, que então já eram e hoje continuam sendo os filhos do vento.
Conheça a história de alguns profissionais desse esporte:
O aprendiz que acumula vitórias
Antony Renan, 23 anos, está em Porto Alegre desde os 18. Veio do Rio de Janeiro.
— Não dei certo lá — confessa o jovem jóquei, olhos baixos e voz mansa carregada do sotaque carioca.
Ainda é um aprendiz — categoria de atletas que disputam páreos específicos. Mas acumula vitórias: em uma semana, ficou em primeiro lugar em três páreos no Cristal e em outros dois em Pelotas.
— O pior de tudo é conseguir manter o peso. É correr para ficar magro e diminuir a boia (comida) — diz, sobre a vida de jóquei. — Não é fácil. Tem que se dedicar. E, no dia a dia, não recebemos (dinheiro).
Entre os cavalos e o direito
O jóquei gaúcho Marcílio Batista Machado da Costa, 46, é o que se pode chamar de exceção à regra. Além de se destacar no turfe, formou-se em direito, em 2021, e trabalha das 21h às 6h no Hospital de Clínicas, onde passou em um concurso em 2010. Atua no Serviço de Processamento de Roupas da instituição hospitalar. É ao fim desse expediente que ruma para os treinamentos no Cristal, onde permanece até as 10h. Dorme só depois disso. E apenas até as 16h, quando começa tudo novamente.
— Era uma realização pessoal ter um curso superior. Comecei a montar com aproximadamente 11 ou 12 anos nas canchas retas. Pesava 24 quilos na época — relata.
Hoje com 54 quilos, diz ter "meu melhor peso em todos os tempos". E compartilha a estratégia para mantê-lo, em uma idade já avançada para um atleta:
— Não me privo de comer nada, mas não janto. E evito bebida alcoólica. Cerveja eu não tomo.
Outra particularidade que faz de Marcílio uma exceção: jamais sofreu alguma fratura.
— Felizmente, sempre tive uma proteção divina — explica.
Quando começou, em 1994, ele recorda, tinha em torno de 65 a 70 colegas na Capital.
— Hoje, somos uns 20, somando os jóqueis de fora da cidade e sem vínculo com o Hipódromo do Cristal — calcula.
Um de seus projetos é sindicalizar a categoria, em busca da união dos jóqueis — para lutar, por exemplo, por algum plano de saúde. Outro: seguir estudando na área do direito — no tempo que sobra de sua atribulada rotina.
A primeira joqueta da América Latina
A porto-alegrense Suzana Davis, 68, é uma lenda entre os turfistas. Foi a primeira joqueta da América Latina a competir profissionalmente. Conquistou o público após vencer mais de 800 páreos em cerca de 60 hipódromos de Brasil, Argentina, Chile, Peru, Uruguai e Venezuela. Desde 1984, atua como starter (função de quem dá largada às corridas) no Cristal. A frase de seu WhatsApp já diz muito sobre ela: "Se Deus me permitir o luxo, entro a cavalo no céu".
Suzana, que pesava 48 quilos nos tempos de atleta, começou a correr a cavalo aos 15 anos, no Hipódromo da Planície, em Canoas. Era o dia 13 de novembro de 1969. Em agosto de 1970, já vencia um páreo no Cristal. Em 21 de dezembro do mesmo ano, teve seu primeiro triunfo como profissional. E assim seguiu por 11 temporadas consecutivas, mesmo competindo entre os homens.
Adorava a velocidade, sentir a potência do cavalo. Só quem está em cima consegue sentir. É uma adrenalina
SUZANA DAVIS
Primeira joqueta da América Latina
O que ela mais gosta no universo das corridas?
— A velocidade. Sentir a potência do cavalo. Só quem está em cima consegue sentir. É uma adrenalina.
Suzana se aposentou da atividade de joqueta em 1981. Casou e foi morar no Uruguai. Voltou à capital gaúcha três anos depois, já divorciada, dando início à atuação como starter no Cristal.
— Meu maior título nessa trajetória toda foi ter sido a primeira joqueta da América Latina no turfe — orgulha-se.
Quedas, traumas e ferimentos
Os atletas do turfe são verdadeiros profissionais autônomos, por isso a dependência dos resultados obtidos nas corridas. A Caixa Beneficente dos Profissionais do Turfe presta ajuda aos montadores quando sofrem algum acidente mais grave nas corridas, além de garantir os benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). É assim não apenas na Capital.
Nas provas mais expressivas do turfe, assim que os cavalos saem do partidor (denominação do lugar de onde partem todos os animais juntos), em alta velocidade, podendo atingir alguns metros adiante até 70 quilômetros por hora, uma ambulância segue atrás. Tudo para garantir o atendimento imediato aos jóqueis em caso de uma queda grave. O número de acidentes na Capital, no entanto, é um mistério. Não há levantamentos sobre esse tipo de queda, nem entre praticantes e entidades do esporte, nem em hospitais como o Clínicas, o Mãe de Deus e o Pronto Socorro.
O médico Marcos Paulo de Souza, chefe do setor de Traumatologia e Ortopedia do Mãe de Deus, relata o que testemunha:
— Os traumas mais frequentes são fratura de clavícula, na região da cintura escapular e nos membros superiores. Muitas vezes, alguns casos evoluem para cirurgia. Dependendo do tipo de queda, sobretudo quando envolvem mais cavalos, os jóqueis podem sofrer fratura na bacia, no fêmur e na coluna.
Só no Cristal, ocorrem de cinco a 10 quedas por mês. Essa é a estimativa do enfermeiro Alexandre Rodrigues, o Zezé. Trabalhando há 19 anos no hipódromo porto-alegrense, ele conta já ter visto de tudo.
— Certa vez, testemunhei uma queda de seis jóqueis ao mesmo tempo — menciona. — Nesse dia, tivemos de avaliar quais estavam mais machucados para atender — detalha, acrescentando que até os bombeiros e uma unidade do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), além da ambulância que está sempre de prontidão, tiveram de prestar socorro.
Mas a grande dificuldade da vida de jóquei pode ser outra.
— Cerca de 90% deles se perdem em noitadas e na bebida — avalia Carlos Jochins, 80 anos.
Aposentado, ele é um dos grandes conhecedores da história do turfe em Porto Alegre. Conta ter assistido ao último páreo disputado no antigo Hipódromo do Moinhos de Vento, em 1959, além de estar presente na inauguração do Cristal, no mesmo ano. Estima que "a meninada" dure "de dois a quatro anos (na profissão), só". As exigências com o corpo são muitas, mas a falta de dinheiro é o determinante para abreviar a carreira:
— O páreo que melhor paga hoje (referindo-se ao dia em que deu entrevista a GZH) está em R$ 3,6 mil. O jóquei vencedor fica com 10%, ou seja, R$ 360. É muito pouco. E a premiação ainda é menor para os demais colocados.
Espaço perdido
O presidente do Jockey Club do Estado (JCRGS), Deuclides Palmeiro Gudolle, 78, admite que o turfe perdeu espaço na sociedade, inclusive de divulgação via imprensa, e reclama de preconceito em torno do esporte em função das apostas em dinheiro.
— Dizem que tem gente que perdeu fortunas no turfe. Isso não é verdade. Não tem como perder fortunas nesse esporte. Aqueles que venderam apartamento ou casa, que dá para contar nos dedos, nunca contaram para as esposas que eram jogadores viciados em carta. Iam para o hipódromo, mas para ficar no salão e jogar cartas — afirma.
Gudolle sinaliza o que é necessário para um jóquei se destacar na carreira:
— Tem que ter coragem e garra. E o principal: o jóquei tem que ser honesto. Tendo credibilidade, todos os proprietários de cavalos vão desejá-lo como jóquei.
Relação com os cavalos envolve amor e dedicação. E dinheiro
Para os proprietários de cavalos, a relação com os animais é de amor e dedicação. Um exemplo é a veterinária Fabiane de Mattos, 36. Ela costuma acompanhar de perto não só as corridas, mas também os treinamentos de El Cosechero. O cavalo, que tem cinco anos, ensaia sempre com uma carapuça na qual está afixado o símbolo da flor-de-lis, associado à monarquia francesa.
— Fico extremamente emocionada e tenho uma relação de quase filho com ele. Quando me vê, ele relincha — encanta-se.
Segundo Fabiane, para bancar os custos de um cavalo de corrida, o gasto mensal fica em torno de R$ 1,4 mil. Mas ela acaba investindo mais.
— Usamos nele ferraduras de alumínio, que são mais leves em relação às de ferro, e mais caras. Também dou suplementos e vitaminas — cita.
Os cavalos de corrida são como atletas, ela compara. Têm alimentação baseada em aveia, alfafa e ração, com alguns tratadores ainda usando milho — algo menos usual, atualmente. Os animais são montados cedo da manhã para se evitar o calor intenso, por hábito e por ser mais saudável para eles. Por semana, são cinco dias de treino e dois de folga — para recuperar a musculatura.
O fotógrafo Ricardo Rímoli, 58, é um dos proprietários da égua Estrela da Lagoa, de quatro anos.
— A Estrela gosta de comer açúcar mascavo na palma da minha mão — revela, pontuando que o cavalo reconhece o dono pela voz e pelo cheiro.
Ele assegura gastar R$ 2 mil por mês entre alimentação e trato do animal. Convive com os cavalos — e com as corridas no Cristal — desde cedo.
— Trabalhei no hipódromo com 16 anos, recolhendo apostas para o meu pai, que chegou a ter 16 cavalos — conclui.