A inauguração da Arena, em dezembro de 2012, tirou do bairro Azenha uma potência econômica. Entre 1954 e 2014, o Estádio Olímpico foi palco fundamental na construção de um clube à frente de uma receita anual na ordem da centena de milhões de reais, fidelizou a sexta maior torcida do Brasil e promovia eventos que levavam em média 20 mil pessoas por semana à região entre as avenidas Carlos Barbosa, Erico Verissimo, José de Alencar e Azenha. Mais do que a casa de 5 milhões de gremistas, as cercanias do chamado Largo dos Campeões eram consideradas um bom lugar para morar, apesar do movimento antes e depois de jogos.
Oito anos após a saída do Tricolor da Azenha, a Karagounis, braço da construtora OAS e futura proprietária do terreno de R$ 200 milhões, ainda não conseguiu cumprir o acordo para explorar comercialmente esse ponto central da cidade, originalmente idealizado com condomínio e shopping. Quem ficou por lá, contando com a ação prometida pela empreiteira, desarticulada na Operação Lava-Jato, sofre com a insegurança trazida pelo abandono do "velho casarão", como era carinhosamente chamado pelos gremistas.
Hoje, o Olímpico agoniza em ruínas, transformado em uma fonte para quem o invade atrás de qualquer metal para trocar por pequenos valores. No último dia 16, o prefeito Sebastião Melo (MDB) se reuniu com o Ministério Público Estadual para dar um ultimato aos proprietários: se não começarem a construir na área em até um ano, a prefeitura da Capital tomará atitudes que podem chegar à desapropriação do imóvel.
Entre a terça-feira (23) e a sexta-feira (26), GZH circulou nas imediações do estádio conversando com moradores, comerciantes e trabalhadores que convivem com o abandono da área diariamente. A reportagem flagrou furtos de materiais retirados de dentro das arquibancadas, conheceu histórias de quem tenta sair de lá e de quem aprendeu a gostar da tranquilidade sem jogos de futebol por perto.
Os anos de impasse judicial entre a empresa baiana e o clube gaúcho fizeram as barulhentas multidões de torcedores embriagados pela sede de títulos serem trocadas por sorrateiros andarilhos. A equipe de 10 seguranças que circula dentro dos portões do Olímpico — custando, segundo o Grêmio, R$ 100 mil por mês — não é suficiente para impedir que moradores de rua se acumulem nas vias vizinhas ao histórico estádio nem que entrem e saiam do local.
Problema social
Quem enxerga o movimento de longe não consegue identificar se quem pula os portões do estádio são de fato usuários de drogas ou moradores de rua buscando abrigo. O fato é que os acampamentos de pessoas sem residência se multiplicaram pelas calçadas e canteiros nos últimos 10 anos — com aumento ainda maior desde o agravamento da crise financeira gerada pela pandemia de coronavírus.
— Clientes têm se queixado de serem muito abordados por moradores de rua entre o Menino Deus e a Azenha, algo que não acontecia quando o Grêmio estava aqui — diz Heitor Colar, 54 anos, açougueiro da feira de hortifruti que funciona ao lado do estádio desde 1988.
Nos canteiros centrais mais próximos à Rótula do Papa, na Avenidas Erico Verissimo e na Rua José de Alencar, lonas, cordas e estruturas de madeira servem de abrigo aos sem-teto. Segundo moradores da região, os esforços das autoridades em retirar as pessoas daqueles locais acaba sendo superado pelo retorno e remontagem poucos dias depois.
— Em algum lugar eles vão estar, não tem como fazer eles desaparecerem — comenta Léia, 45 anos, dona de comércio na região há cinco anos (ela pediu para não ter o sobrenome divulgado).
Quando a Carris fez um acordo com o clube e estacionou na área do Olímpico seus ônibus fora de uso durante a pandemia, ou quando a Brigada Militar e os Bombeiros utilizaram o terreno para cursos e treinamentos, em junho deste ano, a situação melhorou. O relato dos moradores que têm teto na região mostra que os desabrigados procuram mais o Olímpico e a vizinhança quando o acesso ao interior do estádio é mais fácil.
Sensação de insegurança
Trabalhando como recepcionista diariamente há oito anos em uma cadeira com vista para o lado sul do estádio, Kerlen Silva, 46, conta que ela e os colegas de empresa evitam sair a pé da Ruá Sistemas depois que o sol se põe. Do balcão onde ela atua a partir das 8h, perdeu as contas de quantas vezes viu pessoas entrando e saindo por cima do portão do estádio com fios ou pedaços de metal arrancados das ruínas.
— Fazem isso a qualquer hora do dia, todos os dias, sem medo nem pressa. A gente que precisa estar atento a quem está passando aqui na frente, pois já tivemos colegas assaltados nos deslocamentos entre as paradas de ônibus e a empresa — relata a recepcionista.
Do outro lado do estádio, na curva onde termina a Avenida Carlos Barbosa e começa a Azenha, os relatos de ruídos noturnos corroboram o aumento de atividade quando o sol se põe. Com menor fluxo de automóveis na madrugada, Janara Garcia, 64, conta que acordava ouvindo barulhos de ferro sendo rompido dentro do estádio. Ela deixou a região há dois meses, e agora espera que a filha e o genro vendam o mercado que abriram ali em 2021 para também sair dali.
— Já foram assaltados três vezes em um ano. É um pecado a depredação que deixaram acontecer com este estádio — lamenta Janara.
Enquanto ela falava, duas pessoas escalavam o portão mais próximo do estádio e desciam para a rua, carregando um emaranhado de fios que ocupava as duas mãos de ambos. Já em pé no chão, organizavam a carga para carregarem melhor enquanto caminhavam em direção à Carlos Barbosa. Duas motos da Brigada Militar e seus respectivos PMs, identificados com braçadeiras do 9º Batalhão de Polícia Militar, passavam lentamente no mesmo sentido, poucos segundos depois, ainda encontrando a dupla ao lado do portão. Foi possível ver os policiais militares virando seus capacetes para olhar a cena, mas nenhum deles parou ou abordou a dupla na calçada. A cena foi gravada pela reportagem.
— A polícia está ali, mesmo que a área privada tenha seguranças contratados e aquela rua não seja responsabilidade do 9º BPM. Por este vídeo, me parece que não tinha como ver que eles tinham saído de dentro do Olímpico. Mesmo assim, não tenho dúvida que se alguém tivesse informado a eles, ainda que com um grito, que essas pessoas tinham saído de dentro do estádio naquele momento, a abordagem teria acontecido — explica o comandante do 1º BPM, tenente-coronel Eduardo Cunha Michel.
Na José de Alencar, há relatos de assaltos. A síndica de um prédio que fica a poucos metros do portão principal do Olímpico, em frente à Rua Dona Cecília, guarda imagens de furtos no celular. Ela conta que no primeiro ano de pandemia, quando algumas pessoas deixavam os sapatos do lado de fora do apartamento, um assaltante circulou por andares e roubou pares de tênis. Mais recentemente, a câmera de segurança da garagem do edifício flagrou, em março, a entrada de um assaltante que levou uma bicicleta.
— A gente vê eles circulando pela rua com materiais furtados. É celular, pedaço de fio, qualquer coisa eles querem nos vender. Os roubos são frequentes, estamos muito vulneráveis aqui — declara a mulher, que pediu para não ter o nome divulgado.
Adaptação ao “deserto”
A poucos metros dali, onde dezenas de gremistas costumavam beber antes dos jogos, a rua que antes era conhecida pelos bares agora acumula placas de aluguel e venda de imóveis. Na esquina, um ponto de táxi resiste à queda de movimento com o passar dos anos. Segundo Luiz Vargas, 58, taxista desde 1992 e frequentador daquela esquina da Dona Cecília com a Azenha desde 2000, houve queda de 80% nas chamadas “corridas de cordão”, quando o passageiro pega a viagem no ponto.
— Era normal pegar gente na rodoviária que chegava do Interior e vinha conhecer o estádio. Ou trazer quem morava aqui e vinha comprar na loja do time — relembra o motorista, torcedor do Inter, que confessa a saudade da renda que o rival gerava: — Em dia de jogo, a gente lotava a rua de táxi, e estava sempre saindo para buscar gente que vinha para cá.
Ao lado do ponto de táxi, a churrascaria Espetão, criada em 2010, sobrevive com o movimento de saída das pessoas do trabalho. O gerente Rodrigo Vargas, 42, trabalha ali desde abril e já presenciou duas tentativas de invasão ao imóvel, ambas à luz do dia e frustradas pelos próprios trabalhadores.
— Às 18h vira um deserto, mas nós temos que trabalhar e seguimos, mesmo com esse receio. Tem um certo movimento às 19h, do pessoal que sai do trabalho e passa aqui, que é o que nos faz seguir abertos, mas à noite é bastante inseguro — detalha.
O único comércio que não se queixou da situação de abandono foi a feira do Mercadão. Segundo os clientes e vendedores que se encontram nas quartas-feiras e sábados na Avenida Oswaldo Rolla, o ambiente é tranquilo e seguro para as compras. Há, inclusive, uma vantagem em relação ao período anterior a 2012, quando os dias de jogo forçavam o fechamento das bancas por volta das 15h. Atualmente, eles podem trabalhar até as 19h.
— O consumo caiu mais por conta da crise, pois o cliente segue vindo — garante o açougueiro Heitor Colar.
Ação do poder público
— Tomara que derrubem de uma vez — pede Isolda Sesti, enquanto espera sua filha buscá-la para uma consulta na manhã ensolarada da sexta-feira (26). Ela mora há 16 anos ao lado do estádio e aguarda uma solução.
— Esperamos que a função se resolva porque tem que melhorar. Tomara que com a participação da prefeitura a coisa agilize — estima Paulo, outro morador da região há 10 anos, que pediu para não ter o sobrenome divulgado.
O prefeito Sebastião Melo procurou o Ministério Público (MP) para entender quais os recursos que o Executivo possui para resolver a situação. O gestor acionou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) para criar uma nova lei que revogue o regime urbanístico aprovado em 2009, que valorizava a área do Olímpico. Depois que o texto for aprovado, a Karagounis, braço da OAS que receberá o terreno quando o negócio avançar, terá um ano para apresentar um projeto e iniciar as obras.
Não temos condição financeira para desapropriar e ainda fazer um parque ou outra obra, como em alguns lugares. Mas, se for o caso, algum investidor privado vai poder candidatar seus projetos que mantenham os 20% de uso público para uma parceria
SEBASTIÃO MELO
Prefeito de Porto Alegre
— Caso chegue nesta situação, vamos considerar a desapropriação. Não temos condição financeira para desapropriar e ainda fazer um parque ou outra obra, como em alguns lugares. Mas, se for o caso, algum investidor privado vai poder candidatar seus projetos que mantenham os 20% de uso público para uma parceria — projeta Melo.
O prefeito reconhece a insegurança do local e espera que os responsáveis pelo imóvel invistam mais no combate às invasões. Sem cobrar nominalmente o Grêmio, a Karagounis, ou a Brigada Militar.
Em nota, o 1º BPM, que atua no policiamento da região do Olímpico, afirma que realiza ações em horário de menor fluxo de pessoas para complementar o policiamento fixo rotineiro. Segundo a corporação, foi registrada uma ocorrência por mês, em média, envolvendo furto de cabos na região nos últimos seis meses. O Grêmio também explica, por meio da sua assessoria, que cumpre suas obrigações do contrato com a OAS e confia na legitimidade das medidas que a prefeitura de Porto Alegre quiser tomar para cuidar da área.
Leia a nota do Grêmio, responsável pela segurança do lado de dentro dos muros do Olímpico:
“Na maior parte das situações, os próprios vigilantes dispersam os invasores, sem a necessidade de chamar a Brigada Militar. Porém, em alguns casos, a força policial se faz necessária, principalmente à noite, quando a visibilidade diminui drasticamente.
O Grêmio reforça o compromisso com as suas responsabilidades de guarda patrimonial e limpeza do Estádio Olímpico e ressalta, também, que cumpriu integralmente com todos os compromissos contratuais que lhe cabiam com OAS e Karagounis no negócio jurídico que envolve os imóveis do Estádio Olímpico e da Arena do Grêmio.
Salientamos, além disso, que a troca das propriedades ainda não foi concretizada e finalizada nos termos contratados entre as partes devido aos gravames que recaem sobre a matrícula do imóvel da Arena em virtude dos débitos da Arena Porto Alegrense S.A junto aos bancos financiadores do empreendimento e à não realização das obras de compensação ambiental do entorno do estádio, que são de responsabilidade exclusiva da construtora.
Por fim, o Clube entende que a Prefeitura de Porto Alegre possui legitimidade para estabelecer este debate, como forma de preservar o interesse público.”
Leia a nota da Brigada Militar na íntegra:
“A Brigada Militar informa que, mesmo após a desativação em 2014, o estádio Olímpico segue como ponto de atenção dos efetivos de Policiamento Ostensivo. Antigamente atendido com exclusividade pelo 1º Batalhão de Polícia Militar - 'Batalhão de Ferro', atualmente tem as faces voltadas para a Avenida Dr Carlos Barbosa e Rua José de Alencar atendidas pelo 9º BPM – 'Voluntários da Pátria'.
A área pertencente ao Olímpico possui equipe de segurança privada, responsável pela segurança e guarda patrimonial interna. Externamente, de parte do 1º BPM, há frequentemente policiais militares empregados em ponto fixo na rótula do papa, bem ao lado do Estádio, e constante trânsito de viaturas nas vias adjacentes ao terreno, que interligam diferentes bairros da capital.
Não obstante ao empenho diário de viaturas que patrulham pelo local, a Brigada Militar realiza ações especificas em horários de pouco fluxo de pessoas, a fim de evitar furtos e roubos na região. Ressaltamos que nos últimos seis meses, houve apenas 6 ocorrências de furto de fios registradas. Periodicamente a estrutura do estádio é cedida para a realização de cursos e nivelamento de tropas, além da qualificação dos efetivos, a presença policial também inibe a ação de vândalos e criminosos.
A Brigada Militar combate todos os tipos de crimes, incluindo furtos de fios e tráfico de entorpecentes, contudo é imprescindível que a população colabore, registrando as ocorrências, pois essas são balizadoras do planejamento de policiamento.
Ao presenciar um fato criminoso o cidadão deve ligar imediatamente para o telefone 190, possibilitando a prisão em flagrante e encaminhamento a Delegacia de Polícia competente. Para casos de furtos já ocorridos, o cidadão deve chamar a Brigada para registrar o fato, informando o máximo de características possíveis do criminoso, a fim de que se possa identificá-lo posteriormente.
O vídeo apresentado pela reportagem, no qual se vê indivíduos pulando (com objetos que também não sabem descrever) do interior do pátio do estádio para a calçada da Avenida Oswaldo Rolla, instantes antes da passagem de motocicletas do 9º BPM, reforça o teor dessa nota: caso qualquer das testemunhas tivesse informado aos policiais que se tratava de atividade suspeita, os policiais os teriam abordado e verificado a origem dos materiais, dando o encaminhamento necessário ao acontecido.
A Brigada Militar reafirma seu compromisso com o cidadão, de realizar trabalho sério e qualificado, respeitando direitos e garantias fundamentais, promovendo segurança.”
O que diz a OAS
Em nota, a OAS falou sobre o impasse a respeito da realização das obras no entorno da Arena entre a construtora e o Dmae. A OAS contratou uma empresa para realizar o serviço. O Dmae apontou que o trabalho foi realizado de forma parcial. Em julho, a construtora foi notificada, e o Dmae segue aguardando manifestação. “Foi executado parte do escopo e está sendo avaliado o saldo da realização”, diz nota enviada pela OAS.