Por Jacqueline Custódio
Advogada, especialista em Direito Público, mestre em Museologia e Patrimônio, doutoranda em Planejamento Urbano
Porto Alegre já foi conhecida mundialmente por ser uma cidade em que o poder público era aberto à escuta e ao diálogo com a sociedade, avaliando as prioridades e as necessidades das diversas regiões urbanas. Entretanto, hoje, essa prática perdeu a validade. Isso porque o poder público tem visto toda e qualquer participação popular nas decisões sobre a cidade como um entrave e desrespeita aqueles que têm opiniões diversas das soluções por ele propostas.
Ao longo dos anos, especialmente desde 2010, a alcunha pejorativa de “caranguejos” começou a ser usada contra as pessoas que iniciaram um movimento pela preservação do Cais do Porto. E o que elas pediam? Transparência, participação popular e legalidade dos atos praticados pelo poder público e pela iniciativa privada, naquele momento representada pelo consórcio vencedor da licitação, Cais Mauá do Brasil S.A. Ainda assim, as intervenções feitas por aqueles movimentos sociais foram desqualificadas por agentes públicos e até pela imprensa.
Passados 10 anos, viu-se que os cidadãos tinham razão: em 2020, o contrato foi rescindido por descumprimento de cláusulas, fato apontado em ações judiciais ajuizadas pela cidadania. Porém, esses 10 anos nas mãos do consórcio cobraram seu preço, entre os quais a degradação dos armazéns e do pórtico do cais e a proibição de que a população entrasse na área portuária.
É bom lembrar que, antes da aprovação daquele plano de negócio, o Cais do Porto era utilizado, ainda que de maneira insuficiente, para várias atividades, incluindo Bienal do Mercosul, Feira do Livro de Porto Alegre, mostra de artesanato, festival de teatro, produção de filmes, entre outros. Hoje, nem o nome Cais Mauá tem domínio público; foi registrado pelo antigo consórcio, que está sendo investigado pela Polícia Federal por suspeita de desvio de dinheiro em fundos de pensão.
Outra falácia dita sobre a atuação dos movimentos sociais é de que foram opositores da reformulação da Orla do Guaíba. Voltemos a 1988, quando foi proposto um projeto municipal chamado Praia do Guaíba, que pretendia construir estacionamentos, edifícios comerciais e residenciais na orla entre a Usina do Gasômetro e o Parque Marinha do Brasil. Graças à intervenção social, hoje parte da orla é ponto turístico e tem ocupação democrática, como a orla inteira deveria ter e, sabemos, não tem.
Atualmente, há uma nova proposta para a área e a revitalização do Cais do Porto, que, longe de ser uma questão ideológica, interessa a todos. Assim, o Coletivo Cais Cultural Já, em conjunto com professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sem apoio financeiro e com o restrito tempo disponível pelos voluntários, apresentou diretrizes para a ocupação dos armazéns.
Desde a rescisão do contrato anterior, os coletivos buscavam o diálogo com o governo do Estado, proprietário da área do cais, e também com o município de Porto Alegre. Diálogo que veio a ocorrer há alguns meses com o Estado, por intermédio do Ministério Público de Contas, e que possibilitou apresentar as diretrizes elaboradas para a área dos armazéns.
A proposta do coletivo mostra estudos de viabilidade de uso e ocupação do cais por atividades culturais, além de diretrizes para a viabilização e a sustentabilidade financeira do empreendimento e a gestão através de mecanismos de governança participativa. Foi construída a partir de princípios que pressupõem a participação coletiva, a interdisciplinaridade entre áreas do conhecimento acadêmico-científico e a transdisciplinaridade através da incorporação de saberes de diferentes agrupamentos sociais.
O documento traz proposições que visam transformar o cais, particularmente os armazéns, em espaço de vida cultural rica, diversificada, plural e que seja acessível a todas as classes sociais e segmentos da cidade. Em suma, devolver o Cais do Porto à cidade de Porto Alegre, como um espaço público e aberto para o uso de todos.
E esse resgate não depende de um investimento gigante e privado, como já foi dito. A venda das docas, para a construção de torres de até 200 metros de altura na orla, é uma escolha política da atual administração estadual. Para a restauração dos armazéns, na proposta anterior, estavam previstos cerca de R$ 45 milhões. Atualizados, esses valores estariam por volta de R$ 80 milhões; bem menos do que os R$ 490 milhões que o Estado pretende investir em estradas federais.
Não podemos mais perder tempo. Foram 10 anos irrecuperáveis, por conta de um plano de negócios malsucedido, que foi proposto no lugar de um projeto de recuperação do ponto mais icônico de Porto Alegre. Vida longa aos “caranguejos”!