Por Zita Possamai
Professora nos programas de pós-graduação em Educação e Museologia e Patrimônio da UFRGS
A cada vez que os humanos são comparados aos animais, quase sempre estes últimos saem ofendidos. Muitas vezes se usa apelidos zoológicos com a finalidade de desmerecer o interlocutor. Ou seja, não se discutem ideias de modo franco e aberto. Na falta do bom e respeitoso debate, desqualifica-se jocosamente o oponente. Essa é uma das formas desonestas de conduzir um diálogo.
Em Porto Alegre, nos tempos em que alguns cidadãos insurgiram-se contra a destruição do patrimônio arquitetônico em prol da abertura das largas perimetrais e da construção de elevadas e viadutos, foram chamados de “barões do cupim”. Para quem não entendeu, o epíteto se referia ao apreço desses sujeitos, todos homens, pelas edificações seculares, algumas, supostamente, atacadas por tais térmitas.
Agora, os bichos da vez são os caranguejos, lembrados para apelidar aqueles e aquelas que, supostamente, andam de lado e não deixam a cidade progredir. A querela entre progressistas e recalcitrantes é a mesma. É falsa, diga-se de passagem, pois trata de projetos diferenciados para a cidade.
No período da ditadura civil-militar, alguns desses “barões do cupim” usaram a pena e seu prestígio político para defender edificações como o Mercado Público, a Usina do Gasômetro, as faculdades do Campus Central da UFRGS, o Solar Lopo Gonçalves, entre outras. Imaginem Porto Alegre sem todos esses exemplares de outros tempos que nos lembram de nossa humilde condição histórica.
Hoje, chamam de caranguejos aqueles e aquelas (opa, temos mulheres!) que não aceitam simplesmente que o patrimônio dos porto-alegrenses seja moeda de troca em benefício de poucos. A disputa da vez é o Cais do Porto. Na lógica do projeto apresentado pelo executivo estadual, a venda de um quinhão considerável da orla, três docas, e a permissão de construção de nove torres residenciais viabilizarão a restauração e a devolução do cais e seus armazéns para a população. Há consenso sobre o uso público, turístico e cultural daquela área, alijada há anos do usufruto dos porto-alegrenses e dos visitantes. Contudo, há muitas lacunas na proposta e os valores em questão estão nebulosos, dizem os críticos ao projeto. Conversam sozinhos. Em pleno regime democrático, parecem ser menos ouvidos que o foram os “barões do cupim” durante o período discricionário.
Algumas décadas se passaram, desde então, e Porto Alegre criou um caldo de cultura e de participação democrática que não pode simplesmente ser ignorado pelos governantes de ocasião. Ao contrário, a falta de debate e de participação levou a equívocos desastrosos, a exemplo do Estaleiro Só, onde a bela vista das águas do Guaíba é interrompida por um paredão de gosto discutível. Se há quem não vê problema algum em se construir edifícios para poucos na orla, há muitos que não aceitam isso e desejam que mais pessoas possam opinar sobre os rumos de projetos que visam alterar para sempre a paisagem da cidade.
Colegas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membros do segmento cultural porto-alegrense propuseram o Projeto Cais Cultural, com sustentabilidade econômica e sem ferir os usos já experimentados ali com a Feira do Livro, a Bienal do Mercosul e o Fórum Social Mundial. A meu ver, o Cais do Porto deve espelhar um consenso a ser encontrado em amplo e democrático debate em prol de um projeto público e sustentável que contemple a vocação histórica e cultural daquela área. A venda de qualquer pedaço da beira do Guaíba ao usufruto de alguns detentores de recursos para comprar a sua vista privada poderá ser chorada por nós e, principalmente, pelas futuras gerações sem direito de escolha. Pior ainda, se essa operação bilionária não garantir o uso público e cultural da área a ser renovada.
Deixemos, pois, os bichos fora dessa e sejamos respeitosos com quem não concordamos. Os argumentos da questão são sérios, dizem respeito ao direito à cidade e às águas que a margeiam. A intervenção sugerida pelo executivo estadual modificará para sempre mais uma parte preciosa da paisagem ribeirinha. Qualquer cidadão ou cidadã de Porto Alegre tem direito a não concordar com projetos que privatizam e restringem o uso público da orla do Guaíba. Se há quem prefira desqualificar o interlocutor, além de não respeitar os bichos e a opinião alheia nas arenas disponíveis, passa a impressão de necessitar desses subterfúgios por não ter amparo em sólidos argumentos para fazer frente a um debate de tal magnitude.