Por Flávio Kiefer
Arquiteto e docente na PUCRS
Por exaustão, tinha prometido para mim mesmo me alienar do debate Caís Mauá. Por anos e anos, participei de alguns concursos de projetos para o local. De outros não participei, mas acompanhei. Com todos, me entusiasmei, me posicionei, discuti e até me incomodei. Pior, saí frustrado porque nada aconteceu.
A curiosidade mata, dizem. E de fato, não conseguiria não ver o que estava sendo proposto mais uma vez. E gostei! Vi uma proposta factível e de qualidade. Tão boa que não resisti, volto a meter a colher. Parece que estamos diante do que finalmente é possível concretizar e realizar. O melhor é que inclui a derrubada do Muro da Mauá, numa solução, que se já pensada, nunca foi demonstrada com tanta simplicidade e viabilidade. Dá para fazer. Comecem já!
Mas é justamente o entusiasmo com o que vejo entre o Mercado Público e a Usina do Gasômetro que me leva a protestar. Vejo dois projetos simultâneos e independentes. Um, o Setor Armazéns, de grande valor, exequível e pronto para iniciar; o outro, Setor Docas, inadequado e inapropriado. E não vejo porque um deva financiar o outro. Uma venda casada desnecessária e contrária aos interesses da cidade.
O investimento de urbanização na área dos galpões deve ser público, assim como está sendo feito na orla depois do Gasômetro. Não há porque separar uma margem da outra. Feita a urbanização, para a utilização dos galpões – seja exatamente como a proposta indica ou alterada, não importa – parece que não vai ser difícil achar investidores com interesse em utilizar pavilhões e terrenos tão valorizados, ainda mais sem a barreira do muro.
Quanto ao Setor Docas, não sou dos que se opõem a existência de habitações naquele setor. Acho que moradores dão vida ao local, principalmente depois do entardecer. O que me incomoda é a escala do que está sendo proposto, a sua imagem e inadequação ao contexto. Nada do que eu vi ali se parece com Porto Alegre. A nossa escala não é a de Dubai ou Camboriú. E a experiência tem ensinado que a qualidade da arquitetura real vai ser muito mais medíocre do que as imagens insinuam.
Outro aspecto é a falta de integração com a cidade. A proposta não chega a ser a de um condomínio fechado, mas funcionaria, pelo isolamento físico, quase como se o fosse. O acesso teria que ser realizado por automóveis. A segregação se implantaria com a mesma facilidade como a que vemos nos shoppings da cidade.
A premissa está equivocada. Há um erro conceitual. O vínculo do Setor Docas não é com o Setor Armazéns, mas, sim, com o bairro que lhe é contíguo, o quadrilátero formado pela Avenida Voluntários da Pátria, Praça Parobé, Guaíba e Rua da Conceição. Os terrenos disponíveis nas docas funcionariam como vetores e estímulo aos projetos de revitalização de todo esse quadrante do Centro Histórico. Para isso é inevitável enterrar o Trensurb da Rodoviária ao Mercado, ideia já aventada, estudada e, possivelmente, orçada. O custo é alto, mas os benefícios seriam muito maiores. A urbanização da margem se integraria organicamente aos demais quarteirões. Os novos prédios não deveriam exceder a altura média atual e deveriam contemplar, fundamentalmente, diversidade funcional, cultural, educacional, social, etária etc.: uma nova Cidade Baixa ou Bom Fim da Alberto Bins à beira d’água. A integração dos dois lados da Mauá vai incentivar a conversão de edifícios comerciais em residenciais como a prefeitura quer. O que é salutar.
Sem enterrar o metrô, não vejo como utilizar o Setor Docas. O isolamento que alguns podem ver como vantagem, considero discricionário. O urbanismo precisa fazer sua parte para integrar a sociedade porto-alegrense e superar a segregação estrutural que nos constituiu historicamente.
Dizer que não há recursos para a proposta apresentada aqui é esquecer que Porto Alegre fez o Theatro São Pedro quando mal tinha 20 mil habitantes e o Cais do Porto e os prédios da Praça da Alfândega quando não chegava a 80 mil nos anos 1900. Essas comparações servem para evidenciar como hoje temos dificuldade de pensar nossa capital com a grandeza e simbolismo que merece. O nosso orgulho como coletividade anda tão baixo que passamos a acreditar que o público é o primo pobre do privado, quando, em todos os sentidos, deveria ser o contrário.