A nova tentativa de destravar a revitalização do Cais Mauá, no centro de Porto Alegre, tem diferenças significativas em comparação ao projeto anterior, cujo contrato foi encerrado pelo governo estadual após sucessivos descumprimentos de cláusulas por parte dos empreendedores, como a demora para iniciar as obras.
O plano de R$ 1,3 bilhão em investimentos, apresentado na quinta-feira (25) pelo Piratini, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pelo Consórcio Revitaliza traz como diferenciais a possibilidade de venda da área das docas para uso residencial e a derrubada parcial do Muro da Mauá — pontos que não eram previstos até então.
A previsão de alienação do terreno na extremidade norte para que sejam erguidos nove novos prédios residenciais e corporativos nas docas é uma das novidades controversas. A quantidade de edifícios e a altura exata de cada um (no esboço apresentado na quinta, o mais alto chegava a 90 metros) poderão mudar conforme a definição do projeto executivo a ser apresentado pelos futuros investidores, mas a ideia de vender o espaço e permitir moradia desagrada a parte dos envolvidos no debate sobre o futuro da área, que apontam um risco de restrição de acesso público.
— É viável a construção de edificações nas docas, hotel, escritórios, mas somos contra o uso da área para residências. Também entendemos que a gestão de todo esse grande polo deveria ser feita de forma tripartite por poder público, empreendedores e pela comunidade — afirma a integrante do Coletivo Cais Cultural Já Jacqueline Custódio, acrescentando que o grupo defende usos ancorados na cultura para os demais setores, como o dos armazéns.
O arquiteto e urbanista Benamy Turkienicz prefere falar em tese sobre a presença de moradias em projetos similares de revitalização urbanística. Para o especialista, também professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), iniciativas similares que ele conheceu em cidades de outros países, como Londres (Inglaterra), Hamburgo (Alemanha) ou Gotemburgo (Suécia), incluíram o uso residencial da orla.
— Em tese, não há nenhum problema em prever moradias nesses locais, desde que o uso residencial não se dê no nível térreo, mas nos andares superiores. No térreo, deve haver uso comercial e de serviços, atrações de uso público, que mantenham a animação do ambiente. Essa combinação, em vez de prejudicar, só ajuda — opina Turkienicz.
O importante, segundo o urbanista, é que não seja imposto nenhum tipo de barreira para o acesso público e gratuito ao nível do chão. Pelo projeto apresentado na quinta-feira pelo governo estadual, todos os prédios residenciais ou corporativos teriam uso comercial no térreo (veja detalhes no infográfico abaixo).
O vice-presidente da seção gaúcha da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (AsBEA/RS), Ricardo Ruschel, também vê como positiva a venda de parte da área das docas para moradia a fim de financiar o restante da revitalização. Mas destaca um ponto a ser fiscalizado:
— É preciso que se tenha um cuidado arquitetônico muito grande com o que vai ser construído naquele local. Não se pode fazer qualquer coisa em uma área tão importante da cidade.
Ruschel sustenta que a derrubada de pouco mais de um quilômetro do Muro da Mauá é outra vantagem do atual modelo de recuperação do cais sobre o anterior. Mas faz uma ponderação em relação à segurança dos pedestres rumo ao cais ou voltando de lá em meio ao trânsito de veículos naquele ponto do Centro Histórico.
— Eu tinha um pouco de receio dessa abertura do muro por ficar ao lado de uma via expressa (Avenida Mauá). Mas poderia se avaliar uma mudança que procurasse deslocar o fluxo mais pesado para outra via ou alargar mais o passeio público. Acredito que surgirão outros insights envolvendo mais possibilidades (para melhorar a segurança no trânsito) — pondera.
Veja, no quadro a seguir, essas e outras mudanças trazidas pela nova proposta voltada ao Cais Mauá.
Diferenças entre os projetos
Uso residencial das docas
- A antiga proposta para a revitalização do cais e de seu entorno previa um uso comercial do espaço das docas: a construção de dois prédios corporativos e de um hotel, além da conversão do antigo frigorífico em um centro de convenções.
- O plano atual sugere a destinação de 70% da área útil para moradia e do restante para uso corporativo ou comercial: a intenção inicial é de seis prédios residenciais, dois corporativos e um hotel – todos com uso comercial no térreo. Os usos possíveis do frigorífico incluem centro cultural, museu ou espaços multiuso.
Alienação à iniciativa privada
- A estratégia anterior de reurbanização desse trecho da orla, desenhada ainda no governo de Yeda Crusius e assinada em 2010, previa o arrendamento à iniciativa privada de toda a área a receber investimentos – ou seja, após o período inicial de 25 anos de concessão (renovável), as benfeitorias poderiam voltar à posse do Estado.
- O novo modelo, mais atrativo para investidores, prevê a venda da área das docas à iniciativa privada para uso corporativo e residencial. Isso também facilita a equação financeira para recuperar os armazéns com o recurso obtido nesta operação. Em compensação, essa saída enfrenta oposição de grupos contrários à alienação daquele espaço para uso residencial.
Derrubada parcial do Muro da Mauá
- Uma das medidas mais defendidas por parte da população em relação às iniciativas voltadas para reaproximar a cidade do Guaíba é a derrubada do Muro da Mauá. Havia propostas de revitalização do muro, mas não de demolição, no projeto anterior.
- O projeto apresentado pelo BNDES e pelo Consórcio Realiza estipula a derrubada de pouco mais de um quilômetro do muro entre a ponta do Gasômetro e a Trensurb. O novo sistema de proteção incluiria a construção de um piso elevado de 1m20cm no eixo entre o Guaíba e os armazéns, até a área das docas, que poderia ser complementado por barreiras móveis, caso necessário. O tipo de barreira ainda está em estudo.
Nova proposta para o setor do Gasômetro
- O plano defendido pela empresa Cais Mauá do Brasil, cujo contrato acabou rescindido por descumprimento de cláusulas, como a demora para iniciar obras, previa a construção de um shopping junto ao Gasômetro, com 14 metros de altura. Criticada, a proposta foi alterada para contemplar mais espaços abertos.
- A ideia atual inclui a construção de um prédio voltado a serviços e educação, estacionamento, praça, gastronomia e cultura.
Situação jurídica da área
- Um dos obstáculos a projetos anteriores era o fato de a zona do cais fazer parte da chamada “poligonal portuária”, o que tornava obrigatória a concordância do governo federal para ações envolvendo essa parte da cidade.
- O atual governo estadual conseguiu retirar esse espaço da chamada poligonal e conquistar a propriedade de fato do terreno para si. Isso facilita medidas previstas, como a alienação da área das docas, por exemplo, uma das estratégias para viabilizar financeiramente a recuperação do setor dos armazéns e outras intervenções na região.
O projeto em números
- R$ 1,3 bilhão de investimento total - R$ 300 milhões nos primeiros cinco anos
- Dez a 15 anos de prazo para desenvolvimento do projeto nas docas
- Três anos de prazo para desenvolvimento do projeto nas áreas do cais e do Gasômetro
- 45 mil empregos diretos durante a obra e 5 mil indiretos
- 4 mil empregos permanentes após revitalização
- 15 mil visitantes por dia na área do cais