Os aumentos no preço do petróleo, a alta da inflação e o crescimento do desemprego, somados aos efeitos da pandemia e da concorrência do transporte por aplicativo, atingiram em cheio o serviço de lotação na capital gaúcha. Atualmente, 29 linhas e aproximadamente 200 veículos operam pelas ruas da cidade. Isso representa em torno de 1,3 mil empregos diretos, sem contar os indiretos, como pintores, chapeadores e mecânicos. Os dados são da Associação dos Transportadores de Passageiros por Lotação de Porto Alegre (ATL).
— Está praticamente inviável para as lotações trabalharem com esse aumento do óleo diesel. Hoje, o óleo diesel representa em torno de 40% a 45% do faturamento do sistema. É uma coisa muito elevada e não temos nenhum tipo de regalia. Muitas linhas já pararam porque não possuem mais condições financeiras. O sistema de lotações está na UTI (alusão à Unidade de Tratamento Intensivo dos hospitais) e precisa de oxigênio rapidamente. É necessário desvincular a tarifa das lotações do sistema dos ônibus — analisa Magno Isse, presidente da ATL.
O dirigente cita que um projeto que era para ter sido votado em janeiro na Câmara Municipal segue parado. O texto permite a redução na tarifa, ao estabelecer que o valor mínimo da passagem passe a ser 20% maior do que a do ônibus — atualmente, é de 40% a mais.
— Isso era para ter sido votado em janeiro. Todos os vereadores estavam a favor do rebaixamento do percentual, mas um (Mauro Pinheiro, do PL) pediu vistas e diligência. Então, a votação foi cancelada. Falamos com o presidente da Câmara, Idenir Cecchim, e com os demais vereadores, para que agilizassem isso o mais rápido possível. Ficaram de tentar votar ainda em janeiro, mas houve o recesso. Em fevereiro, o Cecchim nos informou que no dia 7 daquele mês a Câmara voltaria e que colocariam rapidamente em votação. Só que essa diligência foi para a CCJ (Comissão de Constituição de Justiça) e está lá desde janeiro. Na semana passada, conversamos com o presidente da CCJ, Clàudio Janta, e ele ficou de dizer para nós como está a situação. Infelizmente, ainda não conseguimos resolver — lamenta.
Mauro Pinheiro solicitou mais informações no pedido de diligência.
— O vereador pediu informações que faltaram ser respondidas por alguns órgãos. Estamos notificando esses órgãos para responderem e darmos sequência ao projeto, que é de interesse público. Na próxima semana, teremos uma reunião — relata Clàudio Janta.
O preço da passagem de lotação está fixado em R$ 7 desde 3 de julho do ano passado. O público transportado atualmente pelo serviço de lotações na capital gaúcha é composto especialmente por mulheres (57%) e idosos (17%). Os demais 26% ficam diluídos pelo restante da população.
— As lotações, além de todos os problemas que tiveram pelas paradas ocasionadas pela pandemia, também foram muito prejudicadas pela prefeitura de Porto Alegre. A prefeitura realizou um levantamento dos passageiros transportados para cobrar o ISS (Imposto Sobre Serviços) em 2003. Desde então, vem cobrando sempre sobre o valor daquela época, o que é um absurdo. Hoje, não transportamos um terço dos passageiros que transportávamos — explica Magno Isse.
O líder da associação acrescenta outros agravantes relacionados ao contexto de incertezas:
— Para piorar, em 2013, a prefeitura ainda tirou o ISS do sistema ônibus e baixou as tarifas. Como somos atrelados às tarifas dos ônibus, baixaram nossas tarifas também. Só que não tiraram o ISS de nós. Então, sofremos outro pênalti. Para completar, agora a tarifa do ônibus foi calculada em R$ 5,20, mas a prefeitura ordenou que fosse cobrado R$ 4,80, e ela repõe esses 40 centavos. Para nós, calcularam a tarifa também em R$ 4,80. Mas sem nenhum tipo de repasse. Tudo o que é bom para o ônibus não vem para nós, mas o que é ruim acaba caindo no colo das lotações — critica.
Na época das vacas gordas, havia 441 lotações transportando passageiros por diferentes trajetos na cidade. Com a crise e o surgimento do transporte por aplicativo, a situação mudou drasticamente. Muitos permissionários de linhas desistiram.
— O nosso grande concorrente, hoje, é o aplicativo, que praticamente destruiu as linhas curtas — observa, salientando que a linha Rio Branco é um exemplo de encerramento de serviço.
Por lei, o valor da tarifa da lotação precisa ficar entre 1,4 e 1,5 vezes acima do valor da passagem dos ônibus. Segundo o presidente da ATL, o desejo da associação é que essa cifra fique em torno de 1,2. Mas a equação precisa levar em conta a recente inflação.
— A tarifa justa da passagem de lotação deveria ficar entre R$ 7,50 a R$ 8, por causa do valor do óleo diesel, que extrapolou — calcula.
A Petrobras anunciou em 10 de março reajustes nos preços da gasolina e do diesel após quase dois meses de valores congelados nas refinarias. No caso específico do diesel, o preço médio passou de R$ 3,61 para R$ 4,51 por litro, o equivalente a uma alta de 24,9%.
O que diz a prefeitura e a Uber
Questionada sobre o problema das lotações, a Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (SMMU) respondeu que vem dialogando com a ATL para a construção de soluções a curto e médio prazo. A correção, conforme a pasta, passa pela reestruturação do transporte público municipal, a qual está em discussão na prefeitura.
O Executivo municipal informa que foram transportados por lotações 10.851.722 passageiros em 2019 (antes da pandemia), 5.567.637 em 2020 e 5.460.707 em 2021. Percebe-se uma queda de quase metade dos passageiros na comparação entre os anos de 2019 e 2021. Os dados até março deste ano não foram divulgados. Por sua vez, a ATL tem outro levantamento sobre passageiros transportados por lotações nesses mesmos anos. Foram 8.894.000 (2019), 5.535.000 (2020) e 6.140.000 (2021). Comparando 2019 com 2021, a queda fica acima dos 30%.
Em relação à influência dos aplicativos de transporte na crise do sistema de lotações, a Uber enviou uma nota sobre os comentários do presidente Magno Isse, em que nega ter esse papel. Confira a íntegra:
"A Uber acredita que enfrentar o desafio da mobilidade urbana exige uma gama cada vez maior de opções de deslocamento à disposição das pessoas, com soluções compartilhadas entre vários modais. Nesse sentido, a Uber não compete com o transporte público, ela complementa e incentiva o uso da rede ao facilitar o acesso das pessoas às linhas de ônibus, metrô e trens, seja usando o app para ir de casa à estação, seja para ir do último ponto até a porta de casa.
Para aprofundar o diálogo com os operadores de transporte público, a Uber e a UITP (União Internacional de Transporte Público) formalizaram em 2017 uma parceria global. Diversas parcerias para integrar as viagens pelo aplicativo com o transporte público foram implementadas em cidades ao redor do mundo. No Brasil, por exemplo, a Uber lançou no fim de 2019 a modalidade de integração com o transporte público na região metropolitana de São Paulo e passou a exibir informações sobre linhas de ônibus, metrô e trens direto no aplicativo. Além disso, desenvolveu uma iniciativa com o MetrôRio para estimular o uso das linhas subterrâneas em viagens combinadas.
Diversas pesquisas realizadas pelas principais universidades e centros de pesquisa do mundo vêm demonstrando justamente isso.
Uma pesquisa do Observatório Nacional de Segurança Viária realizada pelo Datafolha em 2019 identificou que 84% dos brasileiros já usaram os aplicativos como complemento ao transporte público.
Estudo das universidades de Toronto, Utah e Brigham Young, publicado no Journal of Urban Economics, analisou dados de 196 regiões dos Estados Unidos e identificou um impacto positivo da Uber em relação ao transporte público, elevando o número de passageiros em 5%, em média, em um período de apenas dois anos.
Pesquisa da Associação Americana de Transporte Público revelou que, quanto mais pessoas usarem serviços compartilhados como o da Uber, maior a probabilidade de usarem a rede pública.
Estudo da McGill University, publicada no periódico Transportation Research, que analisou dados de transporte de 25 cidades norte-americanas nos últimos 13 anos e observou que a presença da Uber está associada a níveis maiores de uso do transporte público nas cidades.
Outro estudo, publicado pela National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine, também não encontrou evidências de que usuários de transporte público estejam migrando em massa para aplicativos. Os pesquisadores analisaram dados de cinco cidades americanas entre 2010 e 2016 e concluíram que o uso mais intenso de aplicativos ocorre no período noturno e nos finais de semana, não durante os horários de pico em que o transporte público é mais utilizado."