Por onde se estendia o descampado do morro no final do século 19, hoje estão construídas casinhas que cercam uma pequena gruta no topo da Vila Maria da Conceição, na zona leste de Porto Alegre. O espaço foi criado para homenagear um dos personagens que povoam o imaginário dos gaúchos: Maria Degolada. Nos últimos anos, moradores vêm tentando preservar o santuário, considerado um patrimônio pela comunidade.
Aos 21 anos, Maria Francelina Trenes foi degolada ao pé de uma figueira, em 12 de novembro de 1899, por um policial militar, seu companheiro. O PM alegou que matou Maria após ser agredido, mas foi condenado pelo assassinato – que hoje seria considerado feminicídio – e morreu na prisão. Anos mais tarde, construiu-se a gruta no mesmo local do crime, e a vítima alçou ao posto de santa popular. Devotos passaram a depositar flores e instalaram placas em agradecimento às graças que teriam sido alcançadas após pedidos feitos à jovem.
Antigamente, o santuário era ponto de romaria e peregrinação, que lotavam o entorno. Com o tempo, as visitas foram se tornando escassas. Fulvia Cristina Almeida Garcia, 48 anos, cresceu na Vila Maria da Conceição, acompanhando a devoção da avó e da mãe. Quando garotinha, via a avó Otávia acender velas e rezar pelas graças obtidas. Atualmente, a servente de limpeza é uma das principais responsáveis pela manutenção do local.
— A nossa família toda é devota. Antes tinha mais pessoas levando flores e homenagens. Muitas dessas pessoas faleceram. Eu que fiquei. Minha avó faleceu faz cinco anos e a mãe, há um ano e oito meses. Tinha mais pessoas que eram mais dedicadas. Parte da comunidade foi se desfazendo das suas crenças, da sua fé. Mas eu não perco a esperança — diz Fulvia.
Em novembro, Fulvia preparou o espaço para receber as homenagens do Dia de Finados. O movimento no local costuma ser maior nessas datas, como Dia das Mães ou dos Pais, quando os devotos acendem velas e rezam.
— Sempre que posso, mando limpar e pintar. Também não tenho verbas. Mas do meu jeito mando para deixar de acordo com a memória da minha mãe e de outras pessoas que deixaram suas graças alcançadas — diz Fulvia.
Nesta quarta-feira (12), o pequeno santuário apresentava imagens de santos danificadas e azulejos quebrados. Um dos sonhos da moradora, atualmente, é poder instalar um portãozinho na entrada da gruta para evitar vandalismos no local. O espaço já contou com um portão de acesso, no entanto, ele acabou furtado.
Ao longo dos anos, a violência que passou a assolar a comunidade, em razão da disputa do tráfico de drogas, também afastou devotos de outros locais. Vizinho do santuário, José Luis Mendes, 58 anos, que mora há meia década na comunidade, recorda que a gruta era muito procurada.
— Antigamente, vinha muita gente de fora — recorda o morador, que reforça a necessidade de instalar um portão novo.
Homenagens de diferentes períodos
Para além da devoção a Maria Degolada, a memória preservada pelos antepassados é um dos motivos que levam Fulvia a querer deixar a gruta pronta para receber devotos.
— Meu sonho é deixar aquela gruta limpinha, bonita, para manter a memória da minha mãe, do meu filho (já falecido) e de outros familiares, de outras pessoas que se foram. Tudo que quero é deixar aquilo ali arrumadinho, como um patrimônio da nossa comunidade — diz.
As placas de agradecimento fixadas no muro que contorna a gruta são uma das marcas do local. Há mensagens deixadas por devotos de diferentes períodos, com datas como 1942. Nelas, a maioria se diz grato pelas “graças alcançadas”. Uma das mensagens de agradecimento fixadas no muro é homenagem de Camilo de Lélis, o diretor da peça de teatro Maria Degolada, um mito de Porto Alegre, em 2001.
Além da fé e das lendas que se espalharam pelo Estado no entorno da figura, a história de Maria Degolada também é símbolo da violências de gênero sofrida pelas mulheres.
Uma das placas, instalada pela prefeitura de Porto Alegre em 12 de novembro de 1999, faz menção ao centenário da morte da jovem. Nela, é recordada a memória de Maria Francelina “pelas muitas Marias em que se tornou, e em repúdio a todas as violências e discriminação contra as mulheres”.
Memória é forte na comunidade
Na comunidade, a memória da Maria Degolada, ou Maria da Conceição, ainda é forte. Em 2012, um projeto desenvolvido pela Escola Estadual de Ensino Fundamental Santa Luzia buscou resgatar e enfatizar a importância dos patrimônios culturais da Vila Maria da Conceição. Foram elencados pontos a partir de entrevistas com moradores para serem escolhidos como bens culturais.
A gruta foi um dos exemplos escolhidos pela comunidade, assim como a Pequena Casa da Criança, a escola de samba Academia Samba Puro, o time de várzea Academia do Morro, o campo de futebol Vermelhão, a Igreja de Santo Antônio do Partenon e a própria escola Santa Luzia.
Onde fica
A gruta pode ser acessada por um beco que fica junto à Rua Irmã Nely, na lateral da Pequena Casa da Criança, na Vila Maria da Conceição.