A queda de um carro conduzido por motorista que se negou a fazer o teste do bafômetro na escadaria João Manoel, no Centro, local tombado como patrimônio histórico municipal de Porto Alegre, completou, nesta sexta-feira (14), 47 dias sem que o muro danificado pela passagem do automóvel tenha sido consertado. A retirada do veículo Spin prateado com as laterais amassadas, por volta das 7h de 28 de novembro, um domingo, foi registrada em vídeo por moradores da região e se espalhou por redes sociais.
— Acordei assustada com o barulho. Achei que uma moto tinha caído ali porque um carro não passaria por aquela abertura — comenta Bruna Rosa, 33 anos, moradora de prédio vizinho, referindo-se à entrada da escadaria, que tem menos de dois metros de largura.
O motorista foi autuado em flagrante pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) por não permitir a medição do nível de concentração alcoólica no sangue, perdeu a Carteira Nacional de Habilitação e teve o veículo levado para um depósito do Departamento Estadual de Trânsito (Detran), antes de ser liberado pela Brigada Militar.
O guincho que fez a remoção também deve ser procurado pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC), visto que atuou em área de preservação histórica sem os devidos cuidados para isso. As pedras que foram movidas pelos impactos do acidente e da remoção do automóvel seguem soltas pela escadaria.
— Era notável como o motorista estava atrapalhado, tentando resolver aquela situação. Me chamou atenção que os policiais o liberaram dali sem cobrar uma responsabilização dele — comentou Rosângela Almeida, moradora do quarto andar do mesmo prédio.
A SMC, responsável pela manutenção da estrutura, não tinha sido avisada do dano causado ao muro no acidente. Quase 50 dias depois, a pasta afirma, por meio de nota, que iniciará estudo técnico para encaminhar uma recuperação da obra histórica. Confira a íntegra no final desta reportagem.
Travessia construída em 1929
O belvedere que torna a Rua General João Manoel sem saída para automóveis batizou o edifício de Rosângela e Bruna. De suas sacadas, elas assistiram ao condutor, transtornado com o acidente, ajudar o guincho a remover seu carro do local. Dois policiais militares, outros dois vizinhos e uma agente da EPTC acompanharam, mais de perto, a subida do veículo, que levou cerca de 10 minutos para ser rebocado, passando com dificuldade entre os limites de concreto do passeio público. O motorista não se feriu na descida dos 20 degraus que separaram o carro do meio-fio onde sua trajetória deveria ter terminado.
Construída em 1929, a travessia entre as ruas Fernando Machado e Duque de Caxias ficou conhecida por sua antiga vista para o lado sul do Guaíba. O mirante atravessado pelo carro na última semana de novembro atualmente é ponto de observação de prédios — apenas uma pequena faixa de água e suas margens aparecem entre o concreto, de onde também se enxerga uma parte do Estádio Beira-Rio.
Apesar de a vista para o Guaíba ter minguado, o local ainda é importante ponto de passagem entre a parte alta e baixa do Centro Histórico. Por volta das 10h da manhã desta sexta-feira (14), uma moradora da região subia e outra descia os cinco lances de escadas com uma bifurcação. Mais numerosos eram os três homens em situação de rua que dormiam em dois estágios diferentes do passeio público, cobertos com pedaços de papelão, apesar do calor de mais de 30°C que fazia no momento.
Entre corrimãos e pórticos, duas dúzia de pedras de diferentes tamanhos, vestígios da queda do veículo, descansavam aos pés das árvores. O conserto do muro que fica no topo do ponto turístico deve ocorrer somente depois de estudos e análises técnicas, segundo a SMC.
Cena de filme
Moradora da João Manoel desde 2006, Rosângela Almeida diz nunca ter visto ou ouvido relato sobre um acidente semelhante por ali. A situação mais inusitada que ela viu se deu exatamente duas semanas antes do ocorrido. Da mesma sacada e com o mesmo celular em mãos, ela acompanhou as gravações de uma cena do filme Os Fora da Lei, comédia do diretor porto-alegrense Jorge Furtado.
Curiosamente, o momento fictício criado pelo cineasta na Rua João Manoel reproduzia uma perseguição policial com clímax na escadaria. Duas viaturas da polícia iam atrás de uma moto, que, segundo Rosângela, salta sobre os degraus para despistar os agentes que queriam capturar o condutor dela. Nas gravações noturnas registradas pela moradora, no entanto, não é vista a acrobacia, apenas uma frenagem da motocicleta seguida por dois carros que seriam das forças policiais na trama.
Leia a nota da SMC na íntegra:
"A Prefeitura de Porto Alegre, por meio da Diretoria do Patrimônio e Memória da Secretaria Municipal da Cultura, teve conhecimento de que ocorreram danos na escadaria da Rua General João Manoel, devido à operação de remoção de um veículo que teria invadido essa área. Os detalhes precisos sobre o que de fato ocorreu estão sendo investigados, bem como as respectivas responsabilidades dos envolvidos no ocorrido. Da mesma forma que todos os prédios, monumentos e mobiliário urbano que integram o patrimônio histórico e cultural da nossa cidade, a escadaria da Rua Gen. João Manoel tem importância histórica. É atribuição e dever da Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC), bem como de todos os demais órgãos públicos, zelar e proteger nossas edificações, monumentos e mobiliários urbanos que compõem o patrimônio histórico e cultural da nossa cidade. Essa atenção e zelo com nosso passado e memória comum é responsabilidade que compete igualmente a todos os cidadãos. Tão logo quanto seja possível redigiremos e encaminharemos laudo técnico indicando, consultadas as demais secretarias concernidas, todas as ações cabíveis nesse caso.
Nelson Boeira
Diretoria do Patrimônio e Memória (SMC/PMPA)"