Se a água potável tratada pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) em Porto Alegre tivesse como chegar até nossas torneiras realmente sem gosto nem cheiro, os laboratórios da estação Menino Deus, na Avenida Barão do Guaíba, não teriam utilidade. O local recebe reuniões semanais de degustação com químicos especialistas para avaliar a composição do líquido. Apelidados de “sommeliers de água” em 2017, a equipe detecta, por meio de aromas e sensações no paladar, substâncias que nem a mais precisa das máquinas seria capaz de identificar.
A partir desses e de outros testes é que foi constatado que o atual gosto de terra percebido pelos porto-alegrenses — um fenômeno que ocorre anualmente — é causado pela presença de uma substância em menos de uma gota a cada 2,5 mil litros tratados. O metilisoborneol não prejudica a saúde humana, e aumenta por conta da proliferação de algas, poluição da bacia hidrográfica do Guaíba e decomposição de matéria orgânica, intensificados pelo menor nível de água causado pela atual estiagem.
A dinâmica que identifica esses e outros problemas é chamada de painel sensorial. Ele é complementar às demais avaliações diárias pelo qual o tratamento de água do Dmae passa antes de correr pelos encanamentos da cidade. O processo consiste na análise de três amostras de água coletadas em diferentes pontos da Capital, que são preparadas em temperatura ambiente pelo coordenador Tiago Weber. Um quarto copo contendo o líquido em estado de absoluta pureza e outro trazido direto do Guaíba funcionam para balizar e garantir a isenção do teste cego. Cada técnico bebe e cheira o que é servido em cada um dos copos, anotando, depois, suas impressões sobre o líquido.
— É preciso se concentrar, deixar para trás todos os estímulos e se focar no momento dentro da sala. É preciso passar a água em todas as partes da boca, igual como se faz com o vinho — explica Vanessa Venturi, química formada na primeira turma de especialistas na degustação, detalhando: — Geralmente dois goles são suficientes para identificar o gosto.
Para que a percepção seja a melhor possível, é preciso que pelo menos uma hora tenha passado desde a última refeição para que o técnico esteja habilitado a fazer o teste sem interferência no paladar. Balas e chicletes também ficam para depois. Perfume não entra na sala de degustação, que tem pouca circulação de ar e é refrigerada, justamente para não dispersar os odores do local.
A tabela que recebe o veredicto do especialista sobre o gosto encontrado em cada copo tem uma lista de 45 linhas que vai de “terra, mofo, batata e raiz” até “plástico, verniz e petróleo”, passando por “cítrico, peixe e rançoso”, separados em 10 grupos de origem química por semelhança. Cada “sabor” percebido deve ser apontado na tabela.
As sensações no paladar não podem se sobressair na avaliação dos técnicos, e precisam ficar abaixo do limite de nota 6 em escala de 1 a 12 para que a amostra seja aprovada. Apenas o gosto do cloro é permitido acima da nota de corte. A substância é uma das necessárias para que possamos consumir a água sem as impurezas encontradas no Guaíba.
Influência da pandemia
Até março de 2020, uma rodada de seis técnicos analisando três amostras durava cerca de uma hora. Por mais que cada um tivesse seu próprio copo, a pandemia aumentou esse tempo para quase seis horas, por conta da necessidade de cada químico estar sozinho no recinto durante os cerca de 20 minutos de análise, além de utilizar vários recipientes para aproximação do nariz de modo a sentir os cheiros. Todos os cuidados foram tomados para que os resultados não sofressem alteração.
A cada verão com menor volume de chuva, tanto os técnicos qualificados para degustação quanto os demais funcionários do departamento envolvidos com a coleta sabem que a baixa nos níveis das bacias que abastecem o Guaíba vai causar uma mudança na apresentação da água.
— A gente identifica rapidamente aqui qual o gosto que está acostumado a tomar em casa, assim como as pessoas que não são treinadas para isso também percebem qualquer mínima alteração. E geralmente a gente já sabe quando as reclamações vão começar a chegar a partir da Zona Norte — comenta a química, que vive nessa região da cidade.
Reclamações recorrentes
As temperaturas elevadas em verões com menor quantidade de chuva é a combinação perfeita para aumentar a proliferação de algas e outros micro-organismos no Guaíba e demais rios que o abastecem. A estação da Zona Norte, que fica na altura das pontes, sofre influência direta da situação encontrada nos rios Jacuí e Gravataí. Por isso que a poluição e o baixo nível da água aumentam a concentração das substâncias que geram o gosto de terra.
Metilisoborneol (de abreviação química “Mib”) e Geosmina são os compostos responsáveis pela alteração de gosto terroso apontada pelos moradores da Região Metropolitana. Apesar dos nomes difíceis, no entanto, eles não podem causar danos à nossa saúde. O Mib, inclusive, é o causador do cheiro de terra molhada que sentimos quando as primeiras gotas de chuva alcançam a vegetação e a terra em dias mais quentes.
— Beber a água com esse gosto de terra e sentir o cheiro da chuva tem o mesmo risco para o nosso organismo: nenhum — resume o químico Tiago Weber.
Apesar disso, a equipe e o departamento incluem outros aditivos químicos para regular o gosto — como carvão ativado e dióxido de cloro. Ainda que o gosto de terra persista, a concentração da substância é equivalente a menos de uma gota para cada 2,5 mil litros tratados — e mesmo assim é percebido por boa parte da população. A equipe de químicos afirma que o problema é recorrente em outros lugares que também sofrem com a proliferação de algas quando a temperatura sobe, como o Canadá, de onde vêm os insumos importados usados na capital gaúcha.
— Em laboratório, a gente poderia fazer qualquer coisa, inclusive deixar a água totalmente sem gosto, mas isso teria um custo. A água de Porto Alegre é uma das mais baratas do Brasil, temos que levar em conta o impacto social que nosso trabalho tem — pondera a diretora de Tratamento e Meio Ambiente do Dmae, Joicineli Becker.