Após três décadas de discussões e tentativas frustradas de revitalizar o Cais Mauá, em Porto Alegre, o governo gaúcho apresentou nesta quinta-feira (25) um novo projeto destinado a superar entraves anteriores e transformar os antigos armazéns em uma referência de lazer, gastronomia e turismo na cidade por meio de R$ 1,3 bilhão em investimentos em todo o trecho de 3,3 quilômetros da Usina do Gasômetro às docas.
Para isso, o modelo de aproveitamento da área desenhado em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Consórcio Revitaliza prevê iniciativas como a remoção parcial do Muro da Mauá, a destinação de 70% da área útil das docas para moradia e os 30% restantes para uso corporativo. A ideia é viabilizar a parceria com a iniciativa privada por meio de alienação do terreno das docas, onde poderiam ser erguidos nove novos prédios (o mais alto no esboço apresentado nesta quinta teria 90 metros de altura), incluindo um hotel, e de concessão no setor dos armazéns. O prazo dessa concessão será definido até o começo do ano que vem, mas deverá ficar entre 25 e 30 anos.
Uma das determinações da proposta é derrubar cerca de um quilômetro do muro desde o Gasômetro até as proximidades da estação da Trensurb (onde a retirada não teria grande impacto visual e traria problemas operacionais ao trem). O novo sistema de proteção contra cheias teria duas frentes: a construção de um passeio elevado com 1m20cm de altura na faixa entre os armazéns e o Guaíba (veja imagem na galeria de fotos logo abaixo) — sobre o qual, se necessário, poderiam ser instaladas barreiras móveis complementares. Essa estrutura elevada deverá se estender por toda a extensão do projeto, mas o tipo de barreira a ser usada ainda está sob análise.
Veja como ficaria a região após ser revitalizada
Em relação aos tipos de uso previstos, a proposta separa os 3,3 quilômetros a serem renovados em três setores específicos: o das docas, a ser alienado para construção de imóveis privados residenciais e comerciais, o dos armazéns, que prevê ambientes para realização de eventos, gastronomia, espaços culturais e praça, e o do gasômetro, com prédio voltado para educação e serviços, gastronomia, praça e recreação náutica.
O evento, realizado no Palácio Piratini, teve a participação do governador Eduardo Leite, do secretário extraordinário de Parcerias, Leonardo Busatto, do secretário municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, além de outras autoridades e de representantes do BNDES e do Revitaliza.
— Governos anteriores erraram ao tentar resolver isso, nós aprendemos com esses erros e estamos dando um novo passo — afirmou o governador.
Antes de chegar à etapa atual de apresentação das linhas gerais para o futuro do local, na fase inicial do trabalho destinado a formatar um novo modelo de aproveitamento daquele espaço, foram realizados workshops com diferentes setores da sociedade civil, além de levantamentos de campo, estudos ambientais, de mercado e jurídicos.
O cais já vem recebendo intervenções pontuais. Há cerca de uma semana, foi realizada a inauguração oficial do Cais Embarcadero, localizado na extremidade Sul do terreno, e entregue a revitalização do Muro da Mauá.
A partir de agora, deverão ser detalhados os planos de alienação e de concessão das áreas, e a íntegra do novo projeto de modelagem deverá ser aprovada até o primeiro trimestre do ano que vem. Depois disso, estão previstas consulta e audiência pública, envio da documentação ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) e lançamento do edital no segundo trimestre de 2022 — quando também deve ser realizado o leilão para a área das docas.
Ainda não está definido qual será o formato do leilão para a iniciativa privada, se quem comprar a área das docas será também responsável pela reforma dos armazéns ou se serão investidores diferentes.
— Se determinarmos que quem ficar com a área das docas deve reformar os armazéns, ganhamos segurança, mas o número de interessados pode ser menor — explicou Busatto.
Se forem processos separados, será preciso decidir de que forma o recurso obtido com a alienação das docas será utilizado para viabilizar a reforma na parte do cais.
Outra decisão pendente é se o terreno para as novas construções será oferecido como um bem único ou fatiado para diferentes propostas de múltiplos investidores. A construção dos prédios privados deverá concentrar mais de R$ 1 bilhão dos recursos previstos.
A expectativa é de que os contratos sejam assinados em agosto do ano que vem para, assim, dar início à nova tentativa de tirar do papel a sonhada renovação de uma das paisagens mais emblemáticas da Capital. Se não houver imprevistos, o novo cais seria entregue em três anos após a formalização do acordo.
Projeto em números
- R$ 1,3 bilhão de investimento total - R$ 300 milhões nos primeiros cinco anos
- Dez a 15 anos de prazo para desenvolvimento do projeto nas docas
- Três anos de prazo para desenvolvimento do projeto nas áreas do cais e do Gasômetro
- 45 mil empregos diretos durante a obra e 5 mil indiretos
- 4 mil empregos permanentes após revitalização
- 15 mil visitantes por dia na área do cais
Grupo tem proposta alternativa para a área
O plano oficial de recuperação do Cais Mauá não é o único lançado para debate nos últimos dias. Na terça-feira (23), grupos de pesquisa e projetos de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o Coletivo Cais Cultural Já de Porto Alegre apresentaram uma proposta alternativa para a recuperação do espaço junto ao Guaíba.
Um dos pilares desse estudo independente, que não tem participação dos governos municipal ou estadual, é de que a área tenha um aproveitamento voltado para o setor cultural — o que pode envolver gastronomia, artesanato e polo artístico. O grupo admite parcerias com a iniciativa privada no setor das docas, mas não concorda com a conversão em ambiente residencial.
— Não concordamos com a utilização da área das docas para moradias — diz a representante do Coletivo Cais Cultural Já, Jacqueline Custódio.
Por esse outro caminho, a gestão do cais seria feita de forma tripartite, envolvendo representantes dos empreendedores, do poder público e da sociedade civil. Conforme texto divulgado pelo grupo, "os armazéns e o Gasômetro são bens inalienáveis que precisam estar ao alcance de todos, sem discriminação socioeconômica ou de outra ordem. O modelo de revitalizações de áreas portuárias no mundo (Waterfront Regeneration) baseado somente em empreendimentos comerciais para consumo de alta renda é causador de elitização dos espaços urbanos e promotor de mais segregação socioespacial e desigualdade nas cidades (...)".
Histórico da tentativa de revitalização do Cais
- Há três décadas, ainda no começo dos anos 1990, surgiram os primeiros planos para revitalizar o Cais Mauá transformando-o em espaço de lazer, gastronomia e cultura.
- Após sucessivos projetos fracassados, em 2010 a então governadora Yeda Crusius assinou contrato para revitalização do cais por meio de concessão à iniciativa privada.
- Uma série de obstáculos legais e burocráticos atrasa a concessão de todas as licenças necessárias para o começo das obras.
- Em dezembro de 2017, a prefeitura concede as licenças de instalação que permitem o início das obras na primeira fase do projeto (recuperação dos armazéns).
- Em fevereiro de 2018, é assinada ordem de início da reforma. As obras começam por limpeza e cercamento do terreno por conta da empresa Cais Mauá.
- Em abril de 2018, operação da Polícia Federal envolve antigos gestores da Cais Mauá em suspeitas de irregularidades envolvendo fundos de investimento (que não incluem o fundo do cais). Mas isso espanta investidores e interrompe o cronograma.
- Há sucessivas mudanças nas empresas e nos gestores responsáveis por comandar a revitalização, mas as obras seguem suspensas. A diretoria da Cais Mauá prometia lançar uma "prévia" da revitalização até março de 2019, mas o prazo também não se confirmou.
- Em maio de 2019, o governador Eduardo Leite anuncia a rescisão do contrato com a Cais Mauá por conta de sucessivos descumprimentos de cláusulas e falta de obras relevantes.
- O rompimento dá lugar a uma disputa entre a Cais Mauá e o governo, mas o Piratini acaba vitorioso e determina que a empresa desocupe a área.
- Em outubro de 2020, por meio de uma portaria federal, o cais passa a ser de propriedade direta do Estado, o que facilita futuros projetos em parceria com a iniciativa privada.
- Em maio de 2021, o governo estadual começa a definir uma nova modelagem para a revitalização do espaço (qual a forma de viabilizar os investimentos) em parceria com BNDES e Consórcio Revitaliza - selecionado pelo BNDES entre sete concorrentes.
- Nas últimas semanas, foi inaugurado o espaço Embarcadero, espécie de "prévia" da reforma do cais, e entregue a revitalização do Muro da Mauá. Agora, foi apresentado o plano geral que deverá guiar a recuperação geral da região.