O envolvimento de animais não-humanos em causas judiciais, pleiteando direitos como o de ser bem-tratado ou de conviver com humanos que os tenham cativado, não é novidade. A Justiça recebe cada vez mais processos para decidir pedidos relacionados a pets — cães, gatos e outros bichos.
Mas um condomínio de Porto Alegre protagonizou, nesta semana, uma ação considerada inédita: levou para discussão em assembleia ordinária o direito de um animal comunitário sem raça definida chamado Sequela frequentar os espaços do residencial livremente, sem estar conduzido por guia.
O resultado do pleito foi de 32 a 26 votos favoráveis ao cão, que tem casinha instalada na rua, mas prefere circular entre moradores do Condomínio Ravena II — muitos, aliás, que o conhecem desde que nasceu, há cerca de 15 anos. Sequela é fruto de uma ninhada de oito irmãos. Por ser o mais miúdo, foi assim batizado, apesar de ter saúde 100% em dia. Dócil e abandonado pela família, foi crescendo na vizinhança, mas sempre ganhando agrados de moradores.
Foi ampliando seus espaços, se achegando, até que conquistou o direito de pernoitar em alguns apartamentos. Só que a presença constante do cachorro solto pelo local motivou queixas. E a administração do residencial teve que agir.
— Fomos notificados ano passado, com prazo para o Sequela não andar mais por aqui. O prazo acabou e fomos novamente notificados e multados, em R$ 550. Foi então que recorri. Foi feita assembleia em que a multa foi perdoada, mas a notificação ficou valendo — conta a técnica de enfermagem Andréia Alves Silva, 53 anos, uma das tutoras de Sequela.
Andreia se dedica à causa animal. Há cerca de cinco anos, com outros moradores, cumpriu os requisitos junto à Secretaria Especial dos Direitos Animais (Seda) para dar a Sequela o título de cão comunitário. Além disso, ela e os apoiadores mantêm outros três cachorros em uma lar temporário pago. Alimentação, vacinas e demais cuidados custam cerca de R$ 1 mil por mês e são registrados em planilha pelos envolvidos.
Com a notificação valendo e sob risco de ser expulso, Sequela seguiu os dias gozando de liberdade e fazendo o que, normalmente, é rotina para cachorros: latir, pular nas pessoas e disparar correndo atrás de motoqueiros. As reclamações, portanto, foram se acumulando com o síndico Jezoni Almeida, 41 anos.
— O condomínio é grande e tem muita rotatividade. Moradores novos não conhecem a história do Sequela e reclamam. A gente tinha que estar sempre explicando. Diante dos atritos de ponto de vista, decidimos oportunizar o debate — diz Almeida.
Andreia buscou assessoria para lutar pelos direitos do cão que, já idoso, sofreria se tivesse acesso ao condomínio vetado.
O advogado animalista Rogério Rammê entrou em cena. Moradores organizaram um abaixo-assinado e solicitaram uma assembleia. No pedido, foi escrito: "Requeremos a juntada e análise do abaixo assinado em anexo para apreciação e deliberação em uma assembleia condominial para a manutenção da condição de vida do cão comunitário Sequela para que possa viver os últimos momentos de sua velhice livre, com dignidade e harmonia nas dependências do condomínio que 'escolheu' para viver e proteger".
A luta pelos direito de Sequela teve até atestado de uma médica veterinária declarando que o cão tem "temperamento dócil e não possui zoonose". Além disso, declara que Sequela desenvolveu "laços de dependência com os moradores do condomínio".
A turma a favor de Sequela venceu. Os dois votos de abstenção foram do síndico e do subsíndico.
— Quem faz as regras é a assembleia. A administração cumpre. Fizemos questão de ficar isentos. Sabemos que ocorrerá queixas, que se aparecer fezes na grama, por exemplo, vão dizer que é do Sequela — diz o síndico, que é advogado.
Mas por trás da liberdade de Sequela, há quem responda se algo der errado. A tutora Andreia é responsável em caso de qualquer incidente.
— Ele é dócil, amigo das crianças. Passeia com outros cães. Nunca aconteceu nada grave — diz Andreia.
O advogado Rammê também comemorou a solução do caso:
— Muito embora Sequela seja um cão comunitário, protegido pela Lei Estadual 15.254/19, o caso em questão é no mínimo raro, se não for inédito. A relação socioafetiva, de dependência e de manutenção do Sequela com a comunidade do condomínio foi debatida pelos moradores. O condomínio está de parabéns pelo exemplo dado, pois o rompimento desse vínculo que o Sequela criou há anos com os moradores implicaria danos emocionais ao animal, caracterizando uma situação de maus-tratos. O síndico também está de parabéns pois oportunizou o debate democrático, prevalecendo a vontade da maioria de reconhecer no Sequela um sujeito de direito, vulnerável, com dignidade própria e protegido por lei.