As torres da Igreja da Sé, o casario colorido e o bonde 28 trazem Lisboa para a fachada de uma casa da Rua Olavo Bilac. Do lado de dentro, as homenagens a Portugal só crescem, na decoração, na comida e, especialmente, na música.
Depois do sucesso dos shows vespertinos na rua, a Casa de Fado Maria Lisboa ganhou forma como centro cultural há quase dois anos no bairro Azenha. Foi adaptada a uma residência construída por imigrantes portugueses, onde já moraram quatro gerações da família de Jeferson Luz, 46 anos, que abriu o negócio junto com a esposa, Edna Souza, 41.
Dias antes da inauguração oficial, eles foram frustrados pela pandemia. Chegaram a realizar dois eventos em novembro passado, mas fecharam novamente com o avanço do coronavírus e decidiram só reabrir quando fosse seguro. Voltaram a receber clientes neste mês, com 50% da capacidade.
— A gente sempre sonhou em ter a casa, e estamos aqui com a certeza de estar fazendo tudo certo — destaca Edna.
Com ingressos esgotados vários dias antes dos shows, a casa realiza noites de fado quinzenalmente, com a perspectiva de torná-las semanais em outubro. À tarde, o lugar abre como um café.
Pastéis de nata e de santa clara, travesseiros de Sintra, bolinhos de bacalhau e café Delta provocam a gula dos fãs da culinária portuguesa. Há planos de aumentar o cardápio, com chourizo assado na mesa mesmo e alguns quitutes de nomes mais polêmicos, como a punheta de bacalhau (peixe desfiado servido em um pãozinho).
— O Jeferson está resistindo — ri Edna.
Temendo virar meme, ele pondera:
— Acho que a gente pode lançar e não divulgar na internet.
O lugar é aconchegante, lembra a casa de um parente. Talvez por causa da decoração, feita quase que só com objetos da família e presentes que amigos trouxeram do outro lado do Atlântico.
Em prateleiras e nas paredes, estão expostas as pequenas naus portuguesas construídas em bronze pelo avô de Jeferson, o chale da mãe, uma bonequinha com vestido folclórico trazida por ela da praia de Nazaré, cachecóis com a bandeira portuguesa dados por um cliente. Em cima da porta, fica uma imagem de Nossa Senhora de Fátima trazida no navio na vinda ao Brasil pelos antepassados.
Também fazem parte da decoração a Mariza e a Amália, as duas guitarras portuguesas de Jeferson — apesar do nome, o instrumento lembra mais um violão ou bandolim. Os nomes foram dados em homenagem às lendas do fado Marisa dos Reis Nunes e Amália Rodrigues.
Mas talvez o objeto mais especial exposto na Casa Maria Lisboa seja uma pequena tábua de madeira com uma guitarra portuguesa de metal grudada, a prova de que a música lusitana está no sangue de Jeferson.
Trata-se de um troféu recebido pelo bisavô, que foi um talentoso músico na cidade do Porto. O porto-alegrense não sabia disso quando começou a tocar guitarra portuguesa. Tinha apenas três anos na época que Arcanjo da Silva morreu. Nem sua avó nem sua mãe comentavam do passado do seu bisavô — torciam o nariz para o lado boêmio da carreira dele.
— Elas não gostavam disso de ficar toda noite na boemia, um fado atrás do outro — comenta.
Jeferson foi descobrir a história de Arcanjo por um amigo do seu avô. E, mexendo nos guardados da mãe, encontrou um fado escrito pelo próprio, com o selo da censura da ditadura de Salazar carimbado em vermelho. Ele pretende ensaiá-lo e incorporar ao repertório do seu grupo, Alma Lusitana.
O casal ainda pretende realizar na casa uma série de projetos, como clube de leitura de obras portuguesas e oficinas infantis de culinária de diversas etnias. A ideia é convidar descendentes ou imigrantes para ensinar um prato de fácil execução — a filha Maria, de 10 anos, já deu o nome: Descobrido Minha Identidade.
Também querem retomar neste ano ainda o Fado da Cidade Baixa. Iniciada em 2018 na rua, foi essa ação que os motivou a abrir o centro cultural.