O silêncio absoluto, quebrado apenas pelos passos ansiosos, revela que a repórter está sozinha no templo religioso: passaram-se poucos minutos desde a abertura das portas da Catedral Metropolitana de Porto Alegre em um dia de semana comum. Um olhar atento para as colunas e os vitrais evidencia a grandiosidade da construção, que levou mais de 60 anos para ser considerada concluída. Prestes a completar mais um ano de existência, a Catedral continua majestosa.
Neste sábado (7), comemoram-se cem anos do lançamento da pedra fundamental da construção que, entre os momentos históricos vividos, recebeu até mesmo a ilustre visita do papa João Paulo II, em 1980. Para marcar o centenário, GZH convida os leitores a fazerem um tour virtual pelos diferentes espaços do edifício: o vídeo (veja abaixo) e as fotos passam por recantos desconhecidos da população e até de parte dos fiéis, como as torres que abrigam os sinos, a cripta — que hoje é usada como salão nobre — e o jardim.
Em comemoração à data, a Catedral ganhará um livro com imagens e curiosidades sobre a obra e estão programadas novidades para os próximos meses. Entre elas, visitas guiadas pelos ambientes do prédio histórico que, nas palavras do arcebispo metropolitano, dom Jaime Spengler, pertence à população da Capital.
— A Catedral é uma expressão da unidade da Igreja, que está presente na Região Metropolitana, e é também um monumento da cidade. Ela não pertence ao bispo, pertence à cidade. É a expressão da fé, de um sonho dos nossos antepassados que se tornou realidade. São cem anos de história, cem anos de muito trabalho e de muita dedicação. Certamente, é um monumento que dignifica a cidade de Porto Alegre.
Nesta reportagem especial, você confere a história e os projetos futuros para um dos prédios históricos mais belos do município.
A história antes da história
Para começar a falar sobre a atual Catedral, é preciso voltar décadas na linha do tempo, antes mesmo do lançamento da pedra fundamental. Escritos dão conta de que, com a chegada dos primeiros moradores à beira do Guaíba, já havia celebrações de fé na região, o que motivou a construção de uma pequena capela, na segunda metade do século 18.
A capelinha foi substituída por uma Igreja Matriz, erguida em 1779 em terreno onde hoje está a Rua Duque de Caxias. A construção foi elevada à Catedral em 1853, quando foi criado o primeiro bispado do Rio Grande do Sul. Uma catedral é o templo principal de uma diocese ou arquidiocese (conjunto de paróquias) e se caracteriza pela presença da cadeira do bispo ou do arcebispo (a cátedra), sendo, portanto, a sua sede. No entanto, o antigo prédio estava ruindo no fim do século 19:
— A criação do bispado trouxe a necessidade de repensar a situação da então Catedral, devido ao estado de conservação da edificação e também ao seu tamanho, que já não atendia às demandas de uma Porto Alegre cada vez maior. Naquela época, não existia a ideia de preservação e olhar de conservação do patrimônio — explica Caroline Zuchetti, museóloga da Catedral Metropolitana.
Em 1916, o então arcebispo, dom João Becker, assume a missão de construir um novo templo e lança um edital de concurso de plantas para o prédio, que seria erguido no mesmo terreno. A comissão de obras recebe projetos de vários lugares do Brasil e do mundo e tem como vencedor o modelo gótico do arquiteto espanhol Jesús Maria Corona. Após três anos, faltando um mês para o lançamento da pedra fundamental, a comissão alega que o projeto é inexequível — provavelmente devido à grandiosidade da construção e à falta de mão de obra capacitada.
Neste momento, entra em cena o monsenhor João Maria Balém, então pároco da Igreja Nossa Senhora da Glória. Ele "invade" a chácara de Dom João Becker — que, frustrado, estava isolado em Gravataí — para apresentar uma possível solução: um projeto inspirado na Catedral de Patras, na Grécia, em estilo renascentista, de autoria do arquiteto italiano Giovanni Battista Giovenale.
A esperança de um novo templo volta a motivar o arcebispo, que nomeia Balém como diretor de obras da nova construção. Engenheiro na então Tchecoslováquia, no leste europeu, José Hruby é chamado para realizar o projeto. No entanto, Balém mais uma vez ganha protagonismo e contata o próprio Giovenale, que se dispõe a ajudar e, após meses de conversa, se oferece para criar um modelo com a sua assinatura — e cai nas graças da comissão de obras. Estava selada a parceria para o trabalho.
Do início ao fim, 65 anos de construção
A pedra fundamental do projeto foi lançada em 7 de agosto de 1921, ainda com a antiga Catedral em pé. A obra começou pela cripta, capela subterrânea com função de sustentação, além da guarda e sepultamento dos bispos — hoje funciona como salão nobre e pode ser locada para eventos.
A primeira parte começou nos fundos do antigo prédio e foi inaugurada em 1929, quando foram trasladados os restos mortais dos bispos e transferidos também os serviços das missas, que antes ocorriam no prédio antigo. Assim, mesmo com a obra e com a construção de um novo templo, a Catedral nunca deixou de realizar celebrações.
O curioso é que o arquiteto que bolou todo o projeto, Giovenale, nunca esteve no Brasil. Ele acompanhou a construção por meio de fotos enviadas por Balém em correspondências, o que fez com que houvesse intervalos de até seis meses entre perguntas e respostas.
A inauguração da "nave" da igreja, local onde se assiste às missas, só ocorreu em 1948 e de forma provisória, com parte do telhado ainda improvisado. A essa altura, já haviam morrido o arquiteto Giovenale, em 1934, e o arcebispo dom João Becker, em 1946.
As grandes atrações da Catedral só foram finalizadas anos depois: as torres em 1971, e a cúpula no ano seguinte. A inauguração da obra, já considerada pronta, ocorreu em 10 de agosto de 1986, durante o arcebispado de dom Cláudio Colling.
O projeto inicial assinado por Giovenale foi praticamente todo seguido à risca; as poucas mudanças incluíram a retirada de algumas colunas internas e a elevação do piso do presbitério (onde fica o altar), além do uso do granito em áreas internas. Os elementos decorativos internos também não puderam ser executados, com exceção de uma tela de Aldo Locatelli. Entre 2000 e 2009, a Catedral passou por obras de restauração — quando também foi tombada pela prefeitura de Porto Alegre.
Diferentes motivos explicam a demora para o término da edificação, como a necessidade de mão de obra especializada, a grandiosidade da construção e a falta de recursos financeiros. Ainda assim, milhares de pessoas contribuíram diretamente para a realização do templo: em 1927, a campanha dos 10 mil legionários calculou que, se 10 mil pessoas doassem um conto de réis, seria possível tirar a obra do papel. O montante não foi suficiente, apesar de significativo, mas os nomes de quem conseguiu completar o valor estão gravados em placas de mármore na cripta.
Vale destacar também que as diversas etapas da obra passaram por diferentes administrações e gerações, momentos de crise econômica e até guerras mundiais. A mudança da moeda ao longo das décadas faz com que seja impossível calcular o real custo da construção, mas qualquer visitante que coloca os pés na Catedral sabe que seu valor histórico e religioso é inestimável.
Granito rosa: pedra local
Uma das grandes peculiaridades da Catedral é que, apesar de ser construída de alvenaria, ela é toda revestida de pedra. E veio do solo porto-alegrense o material escolhido para isso: o granito rosa, extraído de três pedreiras adquiridas pela Arquidiocese na cidade, sendo a principal delas no bairro Teresópolis.
As colunas e pilares internos também são feitos do mesmo material. No entanto, no corpo da igreja, a "nave", é usada a pedra polida, diferentemente do que foi feito na cripta, que tem aparência mais rústica e conta com mármore importado de Carrara, na Itália.
É também na cripta que estão alguns dos símbolos mais conhecidos e intrigantes da Catedral: as oito carrancas indígenas. As paredes com pedras esculpidas a golpes de marreta se somam a outros elementos que remetem à cultura pré-colombiana. Para a museóloga Caroline Zuchetti, é possível fazer diferentes interpretações:
— Esse é o único projeto de Giovenale na América e, como nunca esteve no Brasil, usa os elementos que tem como referência do continente. Nas correspondências trocadas com o monsenhor Balém, não fica explícita a intenção dele com o estilo na parte externa da cripta, mas sabemos que, ao deixar sua marca, escolheu homenagear a cultura nativa e destacar a sobreposição entre as culturas europeias e locais.
Futuro: visitas guiadas e maior integração
Devido à pandemia, não será possível fazer grande evento para comemorar os cem anos. No entanto, um livro disponibilizado a partir deste domingo (8), de forma gratuita no site da Catedral, apresentará fotografias e documentos sobre as obras, muitos destes inéditos — entre as informações a serem reveladas, está a descoberta de quem é o indígena que inspirou as carrancas localizadas na área externa.
Também na mesma data, às 10h, haverá missa especial celebrada por dom Jaime Spengler. Um brunch social, cujo valor arrecadado será doado para a Liga Feminina de Combate ao Câncer, está sendo pensado para o dia 29 de agosto, na cripta. Esse espaço hoje funciona como salão nobre e pode ser locado para casamentos e outros eventos sociais — o valor costuma girar em torno de R$ 19 mil, com acerto que depende do formato de locação. Com a reforma e a revitalização do jardim, que devem ser praticamente finalizadas este ano, a ideia é aproveitá-lo ainda mais para outros eventos, especialmente os culturais:
— Já fizemos a climatização e implantação da cozinha industrial no salão, e temos projeto de revitalização da parte externa, com paisagismo no jardim e colocação de um elevador panorâmico, facilitando o acesso pela rua (que já é possível para quem chega a pé, na rua entre a Catedral e o Palácio Piratini). Nossa intenção é que, além da locação pontual para casamentos, formaturas e eventos corporativos, possamos trabalhar com exposições culturais e concertos, por exemplo — detalha Letícia Huff, responsável pelo setor comercial e de eventos.
Para março do ano que vem, quando a cidade completa 250 anos, a Catedral planeja abrir ainda mais o espaço, com o objetivo de apresentar à comunidade a riqueza cultural abrigada pela construção histórica. Dentre as ideias discutidas, está a oferta regular de visitas guiadas pelos ambientes do templo.
A igreja conta ainda com a área do ossário, também chamada de columbário, onde é possível adquirir lóculos para a guarda de restos mortais ou cinzas após exumação ou cremação. O objetivo é oferecer um ambiente de oração, fé e acolhimento, que conta inclusive com celebração de despedida e atendimento às famílias enlutadas.
Por meio dessas iniciativas, a Catedral busca se tornar autossustentável. Essa, conforme o padre Rogério Luís Flôres, pároco desde 2016, é uma forma de manter projetos sociais e de conservar o prédio:
— Estamos integrando o eixo religioso/espiritual, o eixo social e o eixo cultural. O nosso braço social, inclusive, abrange o trabalho com pessoas em situação de rua, muitas que dormiam em frente à Catedral, trabalho esse que tem parceria com os freis. E essa é uma das formas de manter toda essa estrutura, esse prédio histórico.
Para dom Jaime Spengler, é um presente para os porto-alegrenses poder conhecer de perto um dos símbolos da capital gaúcha:
— Gosto sempre de repetir que ela não nos pertence, ela pertence à sociedade como tal, e a sociedade tem todo o direito, sim, de conhecer esses espaços marcados por beleza, dignidade e nobreza.