Assim que o Boeing presidencial com a comitiva de João Paulo II pousou na pista do Salgado Filho, no pôr do sol do dia 4 de julho de 1980, Porto Alegre viveu 22 de suas horas mais memoráveis. Há 40 anos, o único Papa a visitar o Rio Grande do Sul experimentou chimarrão, topou colocar um chapéu gaudério na cabeça e acabou virando um de nós, convencido pelo povo, que gritava:
— Ucho, ucho, ucho, o Papa é gaúcho!
O hoje advogado Eduardo Caponi Araújo tinha só sete anos na época, mas cantou junto. Ele lembra do momento que o Pontífice apareceu na frente da Catedral Metropolitana e fez vibrar a multidão que se amontoava na Praça da Matriz, na noite do dia 4. Caponi foi levado pela mãe, que já era devota de João Paulo muito antes de transformarem-no em santo — mantinha a Bíblia de páginas douradas com o retrato dele na sala de estar.
A funcionária pública aposentada Janete Bianchini Galuk, 57 anos, também estava lá. E acabou nem voltando para casa naquela noite: junto com a irmã, a adolescente acampou junto à rótula da Avenida Erico Verissimo com a José de Alencar (hoje conhecida como Rótula do Papa) para garantir um lugar perto de João Paulo na missa campal do dia seguinte.
O frio de quatro décadas atrás lembra o vivido nesta semana: o termômetro marcava algo em torno de 10°C.
— Mas a gente não deu muita bola para isso — acrescenta Janete. — Foi uma noite maravilhosa: os jovens chegavam com violão e a gente passou o tempo cantando, rezando.
O Papa também não reclamou do clima gaúcho, o mais parecido ao da sua terra Polônia que encontrou no Brasil. Atestando sua fama de carismático, ainda usou a temperatura baixa para agradecer a recepção do povo gaúcho:
— Me diziam que o clima aqui é frio. Eu sinto o contrário, um grande calor.
Com 18 anos na época, Kleber Rogério Barbosa não pôde responder com o entusiasmo que sentia. Servindo no Exército, era um entre dezenas fazendo a segurança do Papa. Enquanto seguia o papamóvel pela cidade em um caminhão do 3º Batalhão, ficou impressionado com o público que lotava as ruas. Kleber integrava um pelotão incumbido de proteger autoridades que vinham a Porto Alegre, mas nunca viu tanta gente reunida.
Essa multidão também cantava que "João, João é nosso irmão" e "rei, rei, rei, o papa é nosso rei". Mas a rima com o gentílico do Estado não foi esquecida, nem aqui, nem no Vaticano. Em 2002, 22 anos depois da visita e três anos antes da sua morte, João Paulo II recebeu o então presidente Fernando Henrique Cardoso e fez questão de repetir:
— O Papa é gaúcho.
Mensagem do Papa em Porto Alegre
Ao longo de 12 dias no Brasil, Karol Wojtyła visitou 13 cidades. Como lembra arcebispo emérito de Porto Alegre Dom Dadeus Grings, havia uma expectativa em torno do discurso que faria em Porto Alegre — em cada capital, tinha um tema diferente. Na rótula junto ao Estádio Olímpico (conhecida hoje como Rótula do Papa), ele falou para cerca de 300 mil pessoas sobre "as vocações do homem como filho de Deus" e apontou o Rio Grande do Sul como um reduto inegável de fé católica.
Dom Dadeus destaca a disposição do Pontífice, que ainda estava com 60 anos e não havia sofrido o atentado na Praça São Pedro, no Vaticano.
— O Papa era todo vigoroso, estava no auge de sua força.
No ano seguinte, 1981, por indicação do cardeal Vicente Scherer, Dadeus foi trabalhar na Secretaria de Estado do Vaticano, junto a João Paulo II. Destaca que o Papa tratava cada pessoa como se fosse única e que não fazia discriminações. Também não se acanhava diante de multidões, como provara nessa primeira viagem ao Brasil. Após consultar sua comitiva sobre o que significava "gaúcho", passou a visita provocando:
— O Papa é gaúcho?
— Ééééé — recebia como resposta.
Resposta inusitada ao receber a chave da cidade
E essa não foi a única demonstração de bom humor do Papa. Ao receber das mãos do então prefeito Guilherme Villela o título de Cidadão de Porto Alegre, perguntou:
— Isso significa que vou ter de pagar impostos?
Ele também aquiesceu ao tradicional rito de passagem do gauchismo e experimentou um chimarrão, oferecido pelo tradicionalista Paixão Côrtes, falecido em 2018. E arranjou tempo para encontrar 18 mulheres argentinas que vieram pedir ajudar para o movimento das Mães da Praça de Maio, grupo que perdeu seus filhos e netos para a ditadura militar que assolou o país vizinho. Isso aconteceu após encontro com seminaristas e vocacionados no Gigantinho, onde foi recebido por 200 cavalarianos pilchados.
Nenhum imprevisto tirou seu rebolado. A caminho do aeroporto, João Paulo entrou em um ônibus com os bispos de sua comitiva, mas o veículo não teve força para subir a ladeira da Rua Espírito Santo. Todos os ocupantes desceram, com exceção do Papa, e o ônibus alcançou Duque de Caxias. Ele apareceu na porta do ônibus e acenou para o povo que pedia para que descesse também.
De volta ao Salgado Filho, ainda quebrou o protocolo: abraçou e beijou crianças e abençoou os funcionários que lhe esticaram o tapete vermelho. Depois de acenar e sorrir por quase um minuto na porta do avião, decolou rumo a Curitiba, deixando uma pequena multidão chorando na pista do aeroporto.
Minidocumentário marca 40 anos da visita do Papa
Neste sábado (4), a Arquidiocesde de Porto Alegre deve lançar um minidocumentário sobre a visita de João Paulo II a Porto Alegre. Fotos, informações e depoimentos estarão presentes no material especial, que será divulgado às 17h35min (hora em que o Papa desembarcou na Capital) nos canais digitais da Arquidiocese: site, Facebook e Youtube.