O Rio Grande do Sul registra 247,8 mortes por covid-19 a cada 100 mil habitantes, conforme a Secretaria Estadual de Saúde (SES-RS) — o número compreende dados até o dia 31 de maio. Porém, as 12 cidades da Região Metropolitana consultadas por GZH têm mortalidade acima dessa média estadual. Metade delas têm número superior aos 300 óbitos por 100 mil moradores. Mas o que chama mesmo atenção é o caso de dois municípios: Esteio e Canoas. Por lá, a mortalidade está quase duas vezes acima da média estadual. Em Esteio, o número é de 408,6 óbitos por 100 mil habitantes. Em em Canoas, são 407,4.
E o que explica a alta incidência de óbitos nas duas cidades? Isaac Schrarstzhaupt, cientista da dados e coordenador da Rede Análise Covid-19, pontua que a mortalidade nas cidades deve ser analisada por três aspectos. Um é a taxa de transmissão ao longo do tempo, se ela apresentou alterações significativas.
— Podem ter havido surtos específicos de muitos casos em um local em algum período — exemplifica ele.
A pirâmide etária da localidade deve ser levada em conta, pois a doença tem letalidade diferente em cada faixa etária, sendo mais letal entre idosos, por exemplo. E também o colapso hospitalar, como ocorreu durante o mês de março, onde houve um aumento desenfreado na mortalidade.
— Para existir a média de 247,8 no Estado, precisam existir as cidades com mais óbitos e as com menos óbitos, pois todas fazem parte da média. E aí, as especificidades, principalmente esses três fatores, influenciam bastante — pontua Isaac.
Esteio cita rastreamento, mas especialistas rebatem
Na cidade com a maior mortalidade da Região Metropolitana, Esteio, a prefeitura pontua o rastreamento da doença como uma das razões para o número elevado. Mas, como explicam especialistas, a testagem por si só não pode influenciar bruscamente na mortalidade. O que explica, então, essas mais de 400 mortes para cada 100 mil moradores em Esteio? Outros fatores apontados por Isaac: o colapso hospitalar durante o início de 2021 e a subnotificação. Estima-se, segundo Isaac, que 35% das mortes por covid-19 são registradas como óbito por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) não especificada.
Em cidades que testam e detectam mais a doença, a subnotificação pode ser menor. Isso é identificado por meio da positividade — o percentual de casos positivos dentro do total de testes aplicados naquele local. Cidades que têm uma positividade muito alta estão subnotificando muito. Mas, o Brasil não é exatamente um parâmetro neste tema. Isaac explica que em Nova York, por exemplo, a positividade considerada ideal está entorno dos 3%:
— No Brasil, mesmo nos momentos mais amenos da pandemia, nossa positividade estava chegava aos 25%.
No Rio Grande do Sul, a positividade é de 28,8%, levando em conta os testes identificados pela SES-RS como positivos e negativos até 31 de maio. Em Esteio, esse número é de 27,4%, conforme os mesmos dados da SES-RS. Não há tanta diferença. Mas, a explicação para a mortalidade elevada na cidade aparece quando se olha para o cálculo da subnotificação.
Subnotificação influencia na mortalidade
Os dados do sistema Sivep-Gripe, do Sistema Único de Saúde (SUS), atualizados até o dia 26 de maio, mostram que a Região Metropolitana registrou 2.572 mortes por SRAG não especificada desde o início da pandemia. Especialistas citam que a grande maioria destes casos se trata de covid-19 não identificada. Isso aponta para uma subnotificação de 22,1% no conjunto das 12 cidades, elevando a mortalidade para 399,4 óbitos a cada 100 mil moradores. Em Esteio, a subnotificação é bem menor, ficando em 13%. Isso ainda elevaria a mortalidade do local para 456,7 mortes a cada 100 mil moradores, mas a deixaria mais próxima da média da Região Metropolitana (incluídas as subnotificações).
A cidade tem sim uma mortalidade maior, por motivos como o surto no início da pandemia e o colapso hospitalar de março, mas a subnotificação elevada em outros locais traz impressão de ainda mais distanciamento entre Esteio e os outros municípios.
Secretária de Saúde em Esteio, Ana Boll reconhece a situação, mas insiste em dois fatores concomitantes para a liderança no ranking de mortalidade: testes e longevidade da população:
— Identificamos precocemente (a covid-19), orientamos medidas de isolamento, testamos familiares, algo que o Ministério da Saúde e a SES não têm como recomendação. Em Esteio, temos uma população mais longeva e que é o grupo mais vulnerável nessa pandemia. Tanto é assim que quase 80% de nossos óbitos são em pessoas com mais de 60 anos.
Contaminação alta em Canoas
O cenário de Esteio não se repete em Canoas. Por lá, a subnotificação impressiona, estando na casa dos 34,4%, conforme os dados do Sivep-Gripe. O número é maior que o de Porto Alegre, com 20,8%, e que o total do Estado, com 18,7%. Incluindo a subnotificação, a mortalidade em Canoas saltaria para 536 óbitos por 100 mil habitantes.
Além da alta subnotificação, em Canoas, o secretário municipal de Saúde, Maicon Lemos, chama atenção para as taxas de contaminação. Segundo ele, desde 2020, a cidade apresenta a maior prevalência de contaminados no Estado. Com isso, gera-se uma cadeia de consequências. Quanto mais contaminados, mais pessoas com chances de precisarem de internação, de evoluírem para um estado mais grave da doença e, consequentemente, mais pacientes com probabilidade de óbito.
Mas quais as razões para uma contaminação elevada? Elas variam, conforme Jeruza Lavanholi Neyeloff, médica epidemiologista da diretoria médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). A contaminação pode estar ligada às medidas de isolamento adotadas, à idade da população, até ao nível de urbanização da cidade.
Canoas, por exemplo, é a segunda cidade mais populosa da Região Metropolitana e a terceira do Estado. Entretanto, tem um território de 131,097 km², quase quatro vezes menor que Eldorado do Sul, cidade menos populosa da Região Metropolitana, mas com uma área de 509,7 km². Canoas é um município de densidade populacional alta, ou seja, onde as pessoas vivem mais próximas em grandes bairros e centros de circulação, um prato cheio para um vírus de fácil transmissão, como o da covid-19.
Aumento na testagem
Em todo ano passado, Canoas fez 56 mil testes de covid-19 pela rede pública. Agora, esse número praticamente dobrou, com mais de 100 mil testes aplicados entre janeiro e maio. A estratégia adotada pela prefeitura, que abriu centros de testagem espalhados por regiões da cidade, é rastrear ao máximo os infectados e seus possíveis contatos, isolando estas pessoas e baixando os níveis de transmissão.
— Estamos investindo em testagem em massa para superar isso (o alto nível de mortalidade). Temos de isolar os contaminados e evitar a propagação em massa da doença. Então, a estratégia em Canoas é ampliar testagem.
Disseminação entre jovens em Alvorada
Como ficou claro, a testagem, sozinha, não pode ser justificativa da alta mortalidade de um local. Alvorada é a cidade que tem a terceira maior mortalidade, são 326,2 óbitos a cada 100 mil habitantes. Porém, é a última em nível de testagem no ranking das cinco cidades com mortalidade acima de 300 óbitos por 100 mil moradores.
Por lá, a prefeitura cita os jovens como responsáveis pela disseminação da doença. O município acredita que eles "tendem a aglomerar-se com mais frequência e ignoram medidas importantes de prevenção como uso máscara e distanciamento social, ocorrendo assim um maior número de contaminados". A administração ainda pontua que "a retomada das atividades econômicas é outro fator a ser considerado neste momento".
Faixa etária
Olhando para os números da SES-RS, a tese perde um pouco de força. Em Alvorada, dos 19.166 casos registrados até a semana passada, a maior parcela dos contaminados estava na faixa etária dos 30 aos 39 anos, com 4.164 casos. Não são exatamente os mais jovens. Depois, aparecem aqueles com idade entre 20 e 29 anos — 3.940 contaminações registradas. Entre os 15 e os 19 anos, foram 914 casos, mais do que a faixa entre os 70 e os 79 anos, que teve 808 casos.
Nesse ponto, a justificativa faz sentido. A covid-19, mais letal entre os idosos, contamina mais os jovens, com circulação social ativa. Os idosos são contaminados em menor número, mas por fatos como a idade ou comorbidades, têm mais probabilidade de evoluir ao óbito. Para reduzir esse quadro, Alvorada busca intensificar fiscalizações que possam coibir as aglomerações no município, como explica a prefeitura.
Testagem influencia na letalidade
Para que os dados sempre se aproximem mais da realidade, a recomendação é testar o máximo possível. Quando mais se detecta casos, mais se torna possível isolar contaminados e baixar a disseminação da doença. Testar mais fará com que se encontre mais casos, por consequência óbvia. Ainda assim, isso não deve ter grande influência na mortalidade — o número de mortes na população como um todo, garante Jeruza. O problema está em testar de menos. Aí, o que pode ser influenciado é a letalidade — o número de mortes entre quem contraiu a doença. Se uma cidade testa pouco, apenas casos mais graves e pessoas internadas, testará mais pessoas que podem evoluir a óbito. Assim, se constrói a impressão de que a doença é mais letal naquele espaço, como explica a médica epidemiologista do HCPA.
Um exemplo disso é Viamão. Em abril, a reportagem mostrou que a cidade era a que menos testava na Região Metropolitana. Em toda pandemia, tinham sido aplicados 5.834 testes. Agora, Viamão já tem 7.956 casos acumulados, mais do que toda a quantidade de testes feita até o final de março. Até o dia 31 de maio, eram 645 óbitos na cidade. Com isso, a letalidade em Viamão era de 8,1%, muito acima dos 2,6% da média estadual.
Novo Hamburgo
— Comparar a mortalidade entre cidades diferentes, com populações e territórios distintos, também é delicado. A epidemiologia tem várias probabilidades, incluindo sorte e acaso. Um dos pontos que mais interferem, como sabemos, está ligado à idade da população — diz Jeruza.
É algo parecido com o que acontece em Novo Hamburgo, que tem a quarta maior mortalidade da Região Metropolitana — 323 mortes por 100 mil habitantes. Por lá, a prefeitura reforça que "não há uma explicação única, lógica nem científica" para a mortalidade acima da média estadual. Mas, aponta que uma das hipóteses adotadas pelo município é que Novo Hamburgo "possui muitos lares de idosos, instituições de longa permanência, com pessoas de fora da cidade internadas nesses locais, que transferem seu cartão SUS para Novo Hamburgo e passam a contar como moradores do município".
Ainda sendo a maior cidade na região do Vale do Sinos, o município tem 246 mil habitantes, mas 402 mil cartões SUS registrados. "As pessoas quando buscam atendimento na rede municipal, com esta transferência do cartão SUS para a cidade, influenciam na contabilidade de óbitos para Novo Hamburgo", cita a prefeitura, em nota.
Mais testes, mais vidas salvas
— A comparação não deve ser sempre com a média do Estado, que tem muita diferença entre populações nas cidades. Talvez, comparar cidades com o índice da região onde estão ou, no caso da Região Metropolitana, com Porto Alegre. Mais do que a colocação em rankings, cada equipe de saúde tem que pensar no benefício da sua população. O padrão ouro seria testar amplamente, rapidamente, podendo rastrear todos os casos. Tentar encontrar os contatos e parar essa cadeia de transmissão. Se a gente testar mais, vai encontrar mais contaminados, claro, mas vamos salvar mais vidas — pontua a epidemiologista.
Somando os dados das 12 cidades da Região Metropolitana, a mortalidade fica em 315,6 óbitos a cada 100 mil moradores, acima da média estadual e próximo dos índices de Alvorada, Novo Hamburgo e Porto Alegre — a Capital tem 321,3 mortes a cada 100 habitantes —, mas ainda distante de Canoas e Esteio.