Às 14h8min de 27 de abril de 1976 os telefones da central do Corpo de Bombeiros da Capital começaram a tocar sem trégua. Em desespero, anônimos pediam socorro diante daquela que seria a maior tragédia da história recente de Porto Alegre. Há exatos 45 anos, o prédio das Lojas Renner, no centro da cidade, era consumido pelo fogo, matando 41 pessoas, ferindo dezenas e deixando uma cidade atônita.
Quase meio século depois, os acontecimentos daquela tarde de terça-feira seguem intactos na memória de quem testemunhou o drama.
— Trabalhei 24 horas seguidas. Foi o pior incêndio da minha vida — resume o 1º tenente José Carlos Machado de Oliveira, 66 anos, hoje na reserva.
À época, Machado era um jovem bombeiro, ainda soldado, com três anos de carreira. Ele foi um dos 200 integrantes da Brigada Militar envolvidos na operação para debelar as chamas, que, em minutos, tomaram o prédio de oito andares, na esquina das ruas Otávio Rocha e Dr. Flores.
Lá dentro, estima-se que havia cerca de 350 pessoas, incluindo funcionários e clientes. Entre eles, estava Maria Mercedes Carreta Dominguez. Hoje com 85 anos, a aposentada era frequentadora assídua da loja de departamentos e estava em um provador, no terceiro andar, quando desconfiou que algo não ia bem.
— De repente, ficou tudo em silêncio. Estranhei. Olhei para fora da cabine e não vi ninguém. Pensei que seria melhor sair dali — relembra Maria Mercedes.
Sem se dar conta do que estava por vir, ela caminhou até as escadas e foi surpreendida por um turbilhão de gente em alvoroço. Ao descer, avistou a fumaça negra que, em seguida, chegaria ao topo do prédio, em ondas. A nuvem espessa seria observada a 10 quilômetros de distância.
— Consegui sair e atravessar a rua. Só então percebi a gravidade da situação. Eu teria morrido, se tivesse ficado. Tinha gente se jogando lá de cima — relata a aposentada.
Duas vítimas morreram dessa forma. Da calçada, o fotógrafo Ricardo Chaves, o Kadão, foi surpreendido pelo estrondo de um dos corpos na marquise. Contratado pela revista Veja, ele foi um dos primeiros a chegar ao local, onde se juntaria à multidão aflita.
— As pessoas choravam e berravam: “Não pula, não pula!”. Um homem abraçava uma mulher pela cintura para ela não se jogar. Os bombeiros faziam o que podiam, em um esforço enorme — conta Kadão.
Com duas escadas mecânicas (do tipo Magirus), os socorristas salvaram pelo menos 45 vítimas, enquanto colegas jorravam água sobre as labaredas. Sem hidrantes suficientes, foi necessário recorrer ao Guaíba, usando lanchas equipadas com bombas para repor os reservatórios escassos. Ao menos seis mangueiras romperam.
Do alto, helicópteros tentavam, sem êxito, ajudar no salvamento. Não era possível a aproximação, e o ar deslocado pelas hélices servia de combustível ao fogaréu. Para piorar, parte das janelas era gradeada e dificultava os resgates. Os elevadores viraram cinzas. As escadarias eram estreitas e já não permitiam passagem. Houve dois desabamentos. No entorno, o Exército foi chamado para conter a massa. Desviando dos curiosos, as ambulâncias zuniam. Toda a rede hospitalar estava mobilizada.
Avisado por um mensageiro (não existiam telefones celulares), o então prefeito da Capital, Guilherme Socias Villela, hoje com 85 anos, chegou ao local quando a tragédia já estava consumada. Era inevitável, recorda Villela, pensar nos casos dos edifícios Andraus e Joelma, ocorridos em São Paulo anos antes (leia mais detalhes abaixo). O enredo se repetia.
— Foi terrível. Daquela desgraça, tiramos muitas lições. Dali em diante, as coisas mudaram — diz Villela.
Tragédia desencadeou mudanças na legislação
Depois da catástrofe, a necessidade de ampliar a segurança contra incêndios — algo ainda pouco debatido naquele tempo — passou à pauta do dia em Porto Alegre. Até então, segundo o tenente-coronel Eduardo Estevam Rodrigues, comandante do 1º Batalhão de Bombeiro Militar, responsável pela Capital, o Rio Grande do Sul não tinha legislação específica sobre o tema.
Desde o início da década de 1970, as áreas centrais das metrópoles brasileiras se verticalizavam. Grandes prédios eram sinônimo de progresso e de modernidade, mas as leis não acompanhavam a transformação urbana na mesma velocidade e a maioria carecia de cuidados que hoje são básicos (como a presença de extintores adequados e em número suficiente).
A partir das tragédias nos edifícios Andraus e Joelma, cidades como São Paulo e Rio de Janeiro assumiram a frente nesse processo. Porto Alegre só tomaria parte no debate após o desastre de 1976.
A primeira providência envolveu o lançamento de uma campanha, liderada por empresários e veículos de imprensa, destinada a angariar fundos para custear a instalação de novos hidrantes na Capital. Cerca de mil unidades foram criadas.
Na sequência, ainda em 1976, o prefeito Villela sancionaria as leis complementares nº 30, estabelecendo normas de proteção contra incêndios, e nº 28, dispondo sobre a necessidade de vistoria obrigatória em prédios para a verificação dessas medidas. Também foi estabelecido um código para instalações prediais de água e esgoto.
— Com isso, passaram a ser exigidos hidrantes externos e internos, extintores de incêndio e saídas de emergência. Percebeu-se que o centro oferecia um risco agregado pela concentração de grandes complexos prediais e de pessoas em espaços limitados. Os bombeiros participaram ativamente disso e também se reestruturaram — diz o tenente-coronel Estevam.
“Ação de corpo ígneo”
Mas, afinal, qual foi a causa do incêndio? Antes mesmo da extinção do fogo, uma equipe do Instituto de Criminalística — hoje Instituto-Geral de Perícias (IGP) — deu início aos trabalhos para descobrir a origem das chamas.
O esforço está descrito em um documento de 24 páginas, guardado nos arquivos do IGP. Nele, os peritos concluíram que a tragédia foi provocada pela “ação de corpo ígneo (cigarro, palito de fósforo, etc.) caído ou lançado, acidental e propositalmente sobre material combustível”. Eles também identificaram “insuficiência de meios de prevenção” e “deficiências arquitetônicas”.
O que restou do prédio destroçado foi implodido e deu lugar a um novo edifício, concebido de forma a garantir segurança.
Os casos Andraus e Joelma
- Antes do drama em Porto Alegre, outros dois incêndios chocaram o país nos anos de 1970. Os episódios ocorreram nos edifícios Andraus, em 1972, e Joelma, em 1974, na capital paulista
- O primeiro envolveu um prédio de 32 andares na Avenida São João, no centro de São Paulo, e deixou 16 mortos. Dezenas de pessoas foram resgatadas de helicóptero
- O caso do Joelma teve como saldo 187 vítimas e mais de 300 feridos. Transmitidas pela TV, as imagens de pessoas se jogando da edificação causaram horror