Um ano depois de entrar em vigor a lei que proíbe a atuação de flanelinhas em Porto Alegre, a realidade pouco mudou: a atividade irregular segue presente com força nos bairros centrais da cidade em 2021. Em 12 meses de legislação, nenhum dos 256 guardadores de carro flagrados chegou a pagar a multa de R$ 300 imposta pela prefeitura. A Guarda Municipal admite que precisa melhorar a fiscalização.
Segundo os dados fornecidos pela prefeitura, entre 16 de janeiro de 2020 — dia em que a lei entrou em vigor — e o mesmo dia de 2021, foram abertos 364 processos contra 256 pessoas, sendo 108 flagradas mais de uma vez. A prefeitura justifica que nenhum dos envolvidos chegou a pagar multa porque os prazos de defesa dos processos administrativos foram suspensos devido à pandemia e retomados só em novembro.
A reportagem de GZH circulou pelos bairros Menino Deus, Praia de Belas, Centro, Bom Fim e Moinhos de Vento nesta quinta-feira (4). Foi possível perceber a atuação livre de flanelinhas. Num dos endereços mais famosos da cidade, a esquina da Marechal Deodoro com a General Câmara, em frente ao Theatro São Pedro, um guardador trabalhava por volta das 11h. Monitorava cada carro que estacionava em volta e corria para dar tempo de pegar o dinheiro. Uma mulher entregou R$ 20 – apesar de estar na área azul, já tendo que pagar para a prefeitura.
No Menino Deus e no Praia de Belas, a atuação era um pouco mais discreta e não se via correria atrás dos carros. Próximo ao Praia de Belas Shopping, um flanelinha com um pano na mão chegou a abordar o carro da reportagem, mas não pediu dinheiro ou estipulou valor. Na Rua Cecília Meireles, ao lado da Praça Itália, dois dividiam um espaço de pouco mais de 100 metros e com poucas vagas.
Foi possível perceber, também, que o número de envolvidos na atividade reduziu após a implantação da área azul e do reforço de policiamento nas proximidades. É o caso do estacionamento no Parque Marinha do Brasil, em frente ao shopping, e também no entorno do Parque Moinhos de Vento.
Responsável pela fiscalização, a Guarda Municipal entende que o número de flanelinhas diminuiu nas ruas da cidade. A análise, no entanto, ainda não é clara se é fruto da lei ou da pandemia e da consequente redução de circulação de veículos. O comandante Marcelo Nascimento reconhece, no entanto, que “o problema ainda persiste”:
— Vamos continuar trabalhando para que essas incidências reduzam gradualmente. Estamos envolvidos em outras questões, dando prioridade à fiscalização de assuntos envolvendo a covid-19, mas não vamos deixar de lado essa questão dos flanelinhas. Vamos continuar atuando, lógico, dentro do nosso limite de recursos.
O comandante ainda adianta que a orientação do novo prefeito, Sebastião Melo, é manter o serviço “sempre que for em benefício do bem comum da sociedade”. Isso inclui, segundo Nascimento, o acompanhamento da situação dos guardadores de carros.
De acordo com a Guarda Municipal, nos últimos 12 meses, foram abordadas 512 pessoas em situações suspeitas. Dessas, 222 tinham antecedentes policiais. Dezessete estavam com mandado de prisão em aberto. Ao todo, 24 foram presos.
Segundo a prefeitura, a expectativa é de que o andamento dos processos que podem gerar a multa chegue à fase final no mês de fevereiro, começando a ter as primeiras cobranças. O valor chega ao dobro, R$ 600, em caso de reincidência. Em caso de não pagamento, o autor terá o nome incluído na dívida ativa do município. Se algum valor for arrecadado, será revertido ao Fundo Municipal de Segurança Pública (Fumseg).
A inexistência de cobrança de multa lembra a fala do ex-prefeito Nelson Marchezan ao sancionar a lei:
— Não queremos aplicar multas, não é essa a ideia. Nosso objetivo não é usar a estrutura de força, mas dizer que é proibido e buscar encaminhamento, alguma atividade para aquela pessoa.
Falta de emprego é motor para atividade irregular
Além da lei, a prefeitura tinha o objetivo de auxiliar os flanelinhas a buscarem empregos formais e deixarem a atividade nas ruas. A iniciativa, no entanto, alcançou números tímidos.
Um estudo da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) aponta que havia 1,1 mil guardadores de carros em janeiro de 2020 na Capital.
Equipes contataram os que trabalhavam na região central, dos cemitérios, Azenha, na rodoviária e no entorno da Arena do Grêmio, no Humaitá. Somente 196 se inscreveram no programa, buscando contato com o Sine municipal. Desses, só 38 se inscreveram em cursos de qualificação, sendo que 36 fizeram entrevistas de emprego. Somente cinco foram contratados — sendo que um deles foi demitido no primeiro mês.
Novo secretário de Desenvolvimento Social de Porto Alegre, o cientista social Léo Voigt diz que a pasta não tem “nada desenhado” especificamente para os flanelinhas. No entanto, garante que está preparando políticas para a população de rua que impactam os guardadores de carros.
— Há muitas pessoas que fazem isso como uma estratégia de complementação de renda. Uma parte dessa população é de rua — justificou.
Trabalho há 25 anos com isso. Esse ano (2020) tive que vender Tri Legal na rua para não passar fome. Antes eu tinha um ofício. E agora?
JÚLIO MOURA
Guardador de carros e presidente do sindicato da categoria
De acordo com o secretário, dois programas devem ser retomados: o Ação Rua e Todos Somos Porto Alegre. O primeiro trata de abordagens de equipes de assistentes sociais a crianças que estão em condição de trabalho infantil ou de rua, especialmente em sinaleiras. O outro foi aplicado com carrinheiros e carroceiros e, por isso, o secretário entende que pode ser reativado com os flanelinhas.
Sindicato diz que lei estimulou irregulares
O presidente do Sindicato dos Guardadores Automóveis de Porto Alegre, Júlio Moura, afirma que a lei estimulou que os “maus flanelinhas” seguissem em atuação, enquanto os cadastrados pela prefeitura — que, na sua visão, “trabalhavam certinho” — perderam os empregos.
— Trabalho há 25 anos com isso. Esse ano (2020) tive que vender Tri Legal na rua para não passar fome. Antes eu tinha um ofício. E agora? — questionou.
Ainda segundo ele, o sindicato deve entrar com um pedido de liminar para suspender a lei, baseado em uma legislação federal.