Após três reuniões sob mediação judicial, a discussão sobre o futuro do transporte público em Porto Alegre acumula tensão nos bastidores por conta das divergências entre prefeitura e Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP), mas as partes destacam que há boa vontade em aprofundar conversas e buscar soluções para a crise do setor.
No primeiro momento, é tratada como urgente a definição do custo da operação mensal de todo o sistema de ônibus e a nova tarifa. Depois, em discussão que poderá se alongar por três meses, vem a repactuação dos contratos de concessão das linhas, assinados em 2015 e, agora, considerados defasados.
Para a ATP, o entrave nas discussões atuais é o reconhecimento, por parte da prefeitura, de que março terá custo de operação estipulado em R$ 42 milhões. O contrato com as concessionárias prevê que o parâmetro é revisado em fevereiro. Se reconhecer os R$ 42 milhões como custo mensal da operação, a prefeitura terá de aportar recursos no caixa das empresas de ônibus caso a arrecadação com passageiros fique abaixo disso. O impasse está feito porque o governo de Sebastião Melo (MDB) ainda resiste.
– Se ficar em R$ 42 milhões e arrecadarmos R$ 42 milhões, não precisa de aporte. É uma previsibilidade. O que as empresas querem é garantia de que, se faltar dinheiro, a prefeitura vai completar. Querem a garantia de receber pelo serviço determinado e exigido pela EPTC. Não é nada demais – diz Antônio Augusto Lovatto, engenheiro de transportes da ATP.
Melo não fecha a porta para o acordo, mas indica critérios a serem atendidos:
– Estamos analisando. Tenho dois requisitos para colocar dinheiro público no sistema. O primeiro é que eles (ATP) têm de topar a repactuação dos contratos. Se não tiver revisão item a item, não coloco. E o segundo ponto é que preciso de um validador externo, pode ser um perito judicial, porque quero saber se aqueles valores a serem colocados estão corretos.
Lovatto, da ATP, assegura que a maior preocupação não é quanto ao valor da nova tarifa.
– O que pedimos é a cobertura do custo de março. A tarifa, quem decide, é a prefeitura. Ela pode deixar no atual valor de R$ 4,55 para o usuário e decidir como faz para cobrir o resto – avalia o dirigente.
Ele refere-se à diferença entre a tarifa técnica – que deriva do custo da operação de transporte – e a tarifa cobrada do passageiro. Quando há desnível entre esses valores, com a tarifa técnica sendo superior à do usuário, a prefeitura ou algum fundo público precisa injetar subsídios para manter o sistema de pé. Porto Alegre tem característica de o usuário bancar o sistema, mas o método foi colocado em xeque nos últimos anos, com o início de aportes públicos para resguardar o equilíbrio de contas.
Estimativas
Se considerados os números de 2020 como baliza, atípicos por causa da pandemia, a tarifa técnica de 2021 poderá ser próxima dos R$ 6, projeta a ATP. Por isso, os cálculos tornaram-se ainda mais complexos, com necessidade de adaptações, diante de uma base distorcida pela pandemia.
– A tarifa técnica, se tivéssemos que estipular hoje, com redução de 20% da operação, seria de R$ 5,35. Ainda teria uma diferença de R$ 0,80 para cobrir. Temos de construir alternativas – diz Luiz Fernando Záchia, secretário de Mobilidade Urbana.
Ao mencionar os valores, Záchia cita a diferença dos R$ 5,35 para o preço atual da passagem, de R$ 4,55, a mais cara dentre as capitais no Brasil. A diferença, para cada viagem de um usuário, teria de ser coberta pelo município ou por mecanismos previstos em novo contrato, o que redundaria em uma conta de milhões de reais.
– Estamos discutindo diversos cenários e o objetivo é chegar na participação zero do município – afirma Záchia.
A próxima reunião está marcada para esta quarta-feira (17), sob mediação da juíza Dulce Ana Gomes Oppitz, do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc).
Em avaliação
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Corte de custo
- Retirada gradual dos cobradores das linhas de ônibus, o que causará queda do custo da operação. Projeto de lei deve ser enviado em breve à Câmara de Vereadores, prevendo qualificação de cobradores para que possam ser aproveitados em outras funções.
- As isenções tarifárias, que hoje contemplam 31% dos usuários de ônibus, serão reduzidas. Não estão definidos os grupos que perderão o benefício, mas o município estuda manter a gratuidade para pessoas de baixa renda familiar, cortando as de quem não se enquadra neste critério. Um exemplo é o estudante universitário que não é de baixa renda. Ele está no grupo que poderá ter o benefício revisto. Projeto será enviado à Câmara em breve.
- Ainda na redução de custos, o prefeito Sebastião Melo pleiteia politicamente que o governo federal retire os impostos que incidem sobre o sistema. Ele ainda requer que o governo estadual corte o ICMS do diesel para o sistema de transporte.
Geração de receita
- A ideia é capitalizar um fundo de mobilidade urbana de Porto Alegre. Ele já existe no papel, mas não tem fonte de receita.
- Um dos pontos em estudo é repassar ao fundo os valores arrecadados do estacionamento na Área Azul.
- Melo cita a hipótese de abastecer o fundo a partir da revisão do plano diretor de Porto Alegre, prevendo repasses a partir da liberação de novas construções na cidade. Uma espécie de pagamento por índices construtivos que seriam canalizados na poupança para financiar o transporte.
- Melo diz que irá pleitear junto ao Palácio do Planalto a criação de um fundo nacional do transporte público, como se fosse um SUS do sistema de ônibus urbanos. Para o prefeito, dificilmente haverá solução financeira sem apoio direto do governo federal, ente federativo que detém mais recursos.
- Duas hipóteses de geração de receita para subsidiar o modal foram rejeitadas por Melo: cobrar taxa de operação dos aplicativos de transporte, o que ocorre com outras modalidades do sistema, e a instalação de pedágio urbano.
Limite para subsídio
O prefeito Sebastião Melo admite subsidiar o déficit do transporte público só no período em que a repactuação contratual estiver sob discussão. Superada a etapa, o sistema terá de se sustentar com a tarifa do usuário, com reduções de custo e eventuais novas receitas destinadas ao fundo. Recursos do caixa municipal, diz ele, não serão mais repassados:
– Depois não tem um centavo público a mais, não tem como colocar, se não vai faltar até para tapar o buraco de rua.
A Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP) avalia a repactuação dos contratos assinados em outubro de 2015 (um mês antes da chegada do Uber em Porto Alegre) como a “última esperança” das empresas do setor. Antônio Augusto Lovatto, engenheiro de transportes da ATP, entende ser necessário revisar características que encarecem os veículos utilizados, como os motores traseiros, e a prefeitura admite fazer revisão da malha, com redução de horários das linhas sobretudo no período da noite, para mitigar a circulação de carros com poucos passageiros, o que onera o custo. Lovatto não afasta a possibilidade de empresas que integram os consórcios buscarem se retirar da operação caso não haja soluções em médio prazo:
– Há comprometimento com empréstimos e atraso de pagamento de fornecedores em praticamente todas.
Para o secretário de Mobilidade Urbana, Luiz Fernando Záchia, esforços serão necessários para viabilizar o funcionamento adequado do sistema de ônibus.
– Cerca de 250 mil pessoas só andam de ônibus em Porto Alegre. Isso é um problema social. Uma pessoa pode não usar ônibus, mas os trabalhadores que lhe servem, como porteiro, empregada doméstica, funcionário, esses dependem do ônibus – diz.
Carta e desencontros
Antes mesmo de tomar posse, Melo dizia reiteradamente que resolver a crise do transporte público era prioridade. No dia 16 de dezembro, ele enviou um ofício de duas páginas para a ATP afirmando que “é inevitável rever e repactuar” o contrato de concessão. Na carta, Melo listou seis temas a serem debatidos de forma urgente e deixou telefones de técnicos da sua confiança como contato para troca de sugestões, esclarecimento de dúvidas e aceleração do processo. A ATP não se manifestou após o comunicado, diz Melo. São tensos detalhes do xadrez político e matemático que permeiam o desenrolar das negociações.
— Depois disso (carta sem resposta), a minha primeira audiência como prefeito já no exercício do mandato foi com todo o setor do transporte. Eu propus, mas eles não quiseram assinar uma petição conjunta para termos a repactuação do contrato mediada pelo Judiciário. Aí eu mandei sozinho — relata o prefeito.