A subida do bonde nas ladeiras do centro de Porto Alegre é feita com dificuldade. Lotada, a locomotiva para 44 pessoas sentadas transporta quase quatro vezes sua capacidade. Os passageiros extras viajam pendurados no veículo que se convencionou chamar “gaiola”. Com agilidade, o motorneiro maneja a chave que controla as marchas, e dá impulso ao motor elétrico. O relato, rico em detalhes, de um dos tantos itinerários percorridos em uma década e meia é de João Francisco da Silva Bitencourt, 85 anos, ex-funcionário da Carris entre 1955 e 1985.
— Saía fogo por baixo, e sofria na subida da Pinto Bandeira — relembra, de posse da mesma manivela usada em um dos seus antigos bondes.
Quem passa pela Rua São Silvestre, no bairro Nonoai, não pode ter pressa. No alto da via, o idoso interrompe vizinhos e visitantes para contar, com extremo carinho, as histórias de quando atravessava a cidade a bordo do charmoso automóvel elétrico, modalidade retirada de circulação em 1970 pelo município.
— Tinha uma senhora escondida por uma daquelas paineiras da Osvaldo Aranha. Ela tentou atravessar bem na frente, aí eu engatei a ré rápido, mas ela caiu para baixo do bonde. Pensei que tinha matado, mas ela levantou, sem nenhum arranhão, e ainda mandou uma carta pra me elogiar — retoma outro caso.
A idade avançada, que deixa o passo mais lento, não afeta as lembranças do idoso, garante a executiva de vendas Elisiane Peres, 34 anos. GZH convidou os leitores para compartilharem suas memórias do transporte público da Capital, e a neta tomou a iniciativa de convidar a reportagem para conhecer um pouco história de seu avô.
— Falei para ele começar a escrever as histórias. Sou fã, tenho muito orgulho dele, não poderia deixar partir sem serem contadas — diz Elisiane.
Na manhã desta terça-feira (13), o ex-motorista pregou à jaqueta um broche dourado no mesmo formato do logotipo da empresa na qual serviu. O acessório foi entregue em 1981, reconhecimento aos “bons serviços prestados”, conforme o diploma de mérito conservado junto a outros quatro certificados. No crachá, pendurado com orgulho na camisa, o nome a máquina de escrever repete um erro comum. O Bitencourt fora registrado na empresa com dois “t”, e um “e” intruso no final da grafia. Também é guardado como relíquia um vale transporte da época: ficha com “C” grafado ao centro, e a frase “uma passagem bondes” escrita em contorno ao objeto.
— Custava 200 réis — afirma.
Com cuidado, segura uma réplica do veículo que atendia o Menino Deus, brinquedo que hoje usa para explicar o funcionamento do bonde por ele conduzido. Já o pôster que reúne em mosaico fotografias ao lado dos antigos colegas é analisado com perícia.
— Esse aqui era motorneiro. Este, cobrador da (linha) 448. Esse outro pegou o 786, que era o meu número — aponta, com o rosto rente ao quadro.
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Esguio, de chapéu estilo quepe e bigode bem aparado nas fotos em preto e branco, esbanja estilo. Uma gravata por baixo do colete, calçada e paletó completavam o uniforme. O visual suscita brincadeiras, que o deixam um pouco incomodado. E desconversa quando questionado dos romances vividos sobre os trilhos.
— Era proibido conversar com o motorista — se adianta, soterrando qualquer novo boato.
Com as aglomerações no automóvel de transporte de massa, furtos ocorriam com certa frequência, segundo o servidor aposentado. Um dos ladrões passou a ser facilmente identificado: ao cair da porta, com o bonde em movimento, feriu a perna, e passou a usar uma faixa, caminhando aos tropeções.
Outro conto rememorado é o das viagens feitas na madrugada, entre 23h e 5h. “O público das festas”, como definiu, embarcado em vias centrais hoje movimentadas, sem pavimento há seis décadas. Quando a energia elétrica era cortada, confusão e susto com as centelhas do contato dos fios com a estrada de ferro.
Natural de Santa Maria, Bitencourt chegou à Capital após deixar a lida nas lavouras da região central do Estado. Casou, teve quatro filhos, cinco netos e três bisnetos. Uma das filhas, que vive ao lado de sua casa, diz que quase nasceu em um dos bondes.
— Minha mãe estava grávida e por pouco não chega ao hospital — afirma Elis Regina Bitencourt, 55 anos.
A aposentadoria veio antes do que gostaria: um problema de circulação na perna esquerda retirou o maquinista do trabalho. A saudade escapa no fechar de olhos demorado, e nas curtas expressões balbuciadas. Todas seguidas de uma história revivida.
— Bah! Até hoje eu olho pra esse bonde — aponta para a maquete, e reinicia:
— Teve uma vez que um colega foi demitido... — e segue o conto, já decorado pela família.
Confira a entrevista de João Francisco da Silva Bitencourt ao vivo na Rádio Gaúcha: