Meio século após saírem de circulação, os bondes elétricos voltaram às ruas de Porto Alegre na manhã desta quinta-feira (24). Pela manhã, uma das duas locomotivas mantidas no pátio do Palácio da Polícia, na esquina das avenidas João Pessoa e Ipiranga, deixou o prédio sobre uma carreta de 26 metros de comprimento para recontar um pouco da história do transporte público da Capital. O destino foi o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS), no Quarto Distrito. No trajeto, ganhou olhares, buzinas e registros de câmeras de celular.
— Quando a gente ia para Camaquã, saia com a mãe no bondinho com as luzinhas. Faltava luz e ele parava no meio do caminho — relembrou Lúcia Helena Pereira Rodrigues, 59 anos, enquanto varre a calçada e observa o veículo sobre o caminhão.
A movimentação do veículo no pátio da sede da segurança gaúcha começou às 9h. Após meia hora de ajustes nas amarras e discussão sobre o caminho a seguir, o bonde ganhou as ruas, em um trajeto diferente da primeira previsão: em vez de atravessar a Terceira Perimetral, o comboio circulou pela Orla Moacyr Scliar e pelo Centro Histórico.
Quem passava pelas calçadas da Siqueira Campos parou a caminhada para observar e apontar a estrutura. Rogério Paim, 52 anos, saiu às pressas da loja de chocolates para filmar a locomotiva ao lado de outro centenário, o Mercado Público.
— Olha, olha — disse a uma colega antes de puxar o smartphone.
Nascida e criada em Roca Sales, no Vale do Taquari, a comerciante Nely Bassani Freitas, 58 anos, saltava entusiasmada ao fotografar o antigo bonde, já na rua, a caminho da Rodoviária.
— Eu amo, tenho muita vontade de andar. Deveria voltar — sugeriu.
Ao cruzar a alça da freeway, a escolta reduziu a velocidade, limitada a 20 km/h por um trecho, com as três faixas bloqueadas por segurança. Um pequeno congestionamento se formou — logo, a EPTC liberou a pista da esquerda para os automóveis que seguiam o comboio. Na Avenida Sertório e na Rua Voluntários da Patria, o bonde fez seus últimos metros, até a Rua Comendador Azevedo, o ponto final, alcançado às 11h.
— Foi a primeira vez que dirigi um bonde. Quando passou na frente do Mercado Público cheguei a me emocionar — contou o condutor da carreta, Diego Melo, 40 anos.
Os dois bondes haviam sido doados pela Carris à Polícia Civil nos anos de 1968 e 1970. Quando a instituição era responsável por expedir carteira de habilitação, eles foram utilizados como espaço de atendimento ao público e para a realização de testes teóricos do exame.
Os veículos ainda abrigaram o museu da polícia, receberam o serviço de cartório do antigo Departamento de Trânsito e do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa, além de serem usados como depósito documental.
No estacionamento do Palácio, guardavam documentos, o que, segundo a chefe da Polícia, não era adequado pelo valor histórico dos veículos.
— Vamos dar o valor devido aos bondes — definiu a delegada Nadine Anflor.
Ambos os veículos têm eixo duplo e foram construídos pela Osgood-Bradley em 1927 para a Worcester Street Railway, em Massachusetts, e enviados a Porto Alegre em 1946. O amarelo da lataria será revitalizado antes de virar ponto de visitação — o teto de madeira, por exemplo, entrega a deterioração do tempo, com rombos aparentes.
História começou no século 19
Os bondes serão revitalizadas pela Associação de Amigos do MACRS, que apoia financeiramente os projetos culturais do museu. André Venzon, diretor da instituição, afirma que os veículos farão parte de um espaço de convivência, que atualmente passa por reforma.
— Os bondes já têm um interesse próprio, e agora poderemos contar um pouco da história — diz.
Essa história começou, oficialmente, em 1872, quando nasceu a Carris (mais antiga empresa de transporte urbano do país). Primeiro, os bondes eram puxados por mulas. De metal e madeira e com lamparinas a querosene, uma viagem do Centro ao Menino Deus podia levar horas. Acontecia até de os passageiros descerem do bonde com pena dos bichos, como relatado no livro Rio Grande do Sul — Um século de História, de Carlos Urbim.
Em 1908, a companhia inaugurou o serviço de bondes elétricos. Até veículos de dois andares circularam pela cidade: eram chamados de imperiais, embora logo tenha pego o apelido de "chope duplo".
Os bondes desapareceram completamente das ruas da Capital há 50 anos. Para marcar o fato histórico, no dia 8 de março de 1970, foi determinado passe livre — e o povo acotovelava-se em frente à sede da Carris, então na Avenida João Pessoa, e nas paradas para se despedir dos caixotes amarelos.
O prefeito Thompson Flôres levou sua família. Secretários, jornalistas e um grande número de fotógrafos também participaram do que se chamou de "Passeio da Saudade".
O último bonde foi recolhido ao depósito da Carris às 20h30min, enquanto um grupo de motorneiros e cobradores assistia à cena chorando.