O rio, calmo, respeitava os limites de suas margens e se aninhava em seu leito. A ausência de qualquer brisa o fazia um silencioso espelho. Refletia o debilitado sol, que já se deitava em uma de suas margens. Pouco sol e uma temperatura amena marcavam uma daquelas tardes outonais da velha Porto Alegre, às margens do Guaíba. Mas aquele sepulcral silêncio de repente era transformado diante do estrepitar barulhento do ferro sobre ferro.
Era o bonde da linha Gasômetro, que já fizera a última de suas curvas em tão extensa trajetória. E se aproximava do fim da linha. Passara do par de trilhos duplos para o simples e chegava à esquina da Rua Bento Martins, seu momento de repouso, o ponto final daquela extensa linha. O chiar de seus freios ouvia-se a distância. Depois, a parada. Voltava a imperar o silêncio do rio. Só quem estivesse próximo daquele "maratonista de ferro" podia ouvir o barulho feito por seu motorneiro ao retirar duas alças dos comandos, levando-as para a outra extremidade do veículo, ou a outra "frente" do bonde. Ao mesmo tempo, o cobrador baixava e prendia a alavanca que ligava o bonde ao fio da rede elétrica que o acompanhava, pelo alto, ao longo de toda a linha, alimentando-o da energia necessária para chegar ao destino. De imediato, liberava a outra alavanca lutando com a mola por uma boa pontaria que lhe permitisse colocar a roldana no fio que nutria aquele garboso "coletivo de aço".
O sucesso naquelas tarefas autorizava motorneiro e cobrador a sentarem-se em qualquer um dos bancos, já com seus encostos invertidos, para um justo e breve repouso. Ali, permaneciam, fitando o rio, como se recobrassem as energias para a próxima viagem. E o rio continuava calmo, sem se abalar com aqueles valentes "atletas de ferro", que corriam por toda a cidade, ora vazios, ora lotados. Volta e meia o motorneiro olhava seu relógio. Não podia iniciar a viagem nem antes, nem depois do horário. O erro criaria problemas no chegar ao Mercado. Poderia ser punido pelo fiscal que lá estava a controlar o trabalho daqueles homens, uniformizados, que sofriam com o rigor do verão, e do inverno. Mas ali estavam, altaneiros, levando a comunidade de um lado para outro. Entre tantas dificuldades, uma luta era cobrar os pingentes, pessoas que viajavam agarradas nos balaústres das portas, digo, das entradas e saídas, porque os bondes, afinal, não tinham portas. E lá se ia o bonde, rompendo novamente o silêncio do Guaíba.
O motorneiro, com seu olhar fixo na linha, o cobrador, aguardando a chegada dos primeiros passageiros para poder cobrar-lhes a passagem. O Guaíba continuava o mesmo, com seu silêncio, sua extensão, sua profundidade, suas margens e seu inigualável pôr do sol.
Colaboração de Jacson Ramires Abs da Cruz, morador, quando jovem, da Rua Demétrio Ribeiro. "A uma quadra da última parada do bonde Gasômetro, o qual muito usei...", diz o leitor.