Às 20h30min do dia 8 de março de 1970, o último bonde de Porto Alegre era recolhido ao depósito da Carris. Um grupo de motorneiros e cobradores assistia a cena, chorando. Acabava ali o primeiro transporte público da Capital, que marcou o cenário urbano da cidade por mais de 90 anos.
Naquele dia, a prefeitura decretou passe livre para a população. O povo acotovelava-se em frente à sede da Carris, então na Avenida João Pessoa, e nas paradas para se despedir dos caixotes amarelos. O prefeito Thompson Flôres levou sua família. Secretários, jornalistas e um grande número de fotógrafos também participaram do que se chamou de "Passeio da Saudade".
— Bem ou mal, estamos fazendo história — comentara o então presidente da Carris, Telmo Bins.
Essa história começou, oficialmente, em 1872, quando nasceu a Carris (mais antiga empresa de transporte urbano do país). Primeiro, os bondes eram puxados a mula. De metal e madeira e com lamparinas a querosene, uma viagem do Centro ao Menino Deus podia levar horas. Acontecia até de os passageiros descerem do bonde com pena dos bichos, como relatado no livro Rio Grande do Sul - Um século de História, de Carlos Urbim.
Em 1908, a companhia inaugurou o serviço de bondes elétricos. Até veículos de dois andares circularam pela cidade. Eram chamados de imperiais — embora logo tenha pego o apelido de "chope duplo".
O jornalista José Antônio Moraes de Oliveira, 85 anos, refere-se ao serviço de bonde como um transporte de "primeiríssima qualidade". Lembra que tinha bancos de madeira de jacarandá e peças em bronze, e que era pontual e confiável: passava de 10 em 10 minutos. Em algumas linhas, o motorneiro era tão conhecido dos usuários que tocava a sineta na frente da casa deles para alertar que chegou. Para o jornalista, foi o transporte mais democrático que a cidade já vira.
Moraes lembra que tinha por rotina pegar o bonde na Praça Júlio de Castilhos para ir ao Colégio Rosário. Quando assistia à última sessão de cinema na Praça da Alfândega, era tradição apreciar um bauru na Confeitaria Matheus e sair correndo para embarcar no último bonde na Praça XV, que partia religiosamente à 1h. Outra memória deliciosa é de quando pegava a linha Prado com o pai para ir até o hipódromo, que ficava onde hoje está o Parque Moinhos de Vento, aos finais de semana — linha usada por homens engravatados e mulheres com seus chapéus mais caros.
— O pai contava que em certos momentos o pessoal voltava a pé para o Centro, já que tinham perdido todo o dinheiro das apostas — relembra.
Ao encontro do saudosismo de Moraes, e de toda uma parcela da população porto-alegrense, não faltaram projetos para reavivar alguma linha de bonde turística. Nenhum engrenou.
Cinco décadas anos depois da última viagem de bonde, a prefeitura segue sem ter nada concreto. A Secretaria de Desenvolvimento Econômico afirma que, dentro do trabalho de revisão do Plano Diretor (PDDUA), existe a intenção de contratar planos de desenvolvimento sustentável do turismo. Na região centro, "será avaliada a continuidade do projeto de linha turística por meio de bondes históricos, com resgate das carrocerias originais", conforme estudo de viabilidade Contratado pela prefeitura e aprovado pelo Ministério do Turismo.
Bondes serão doados ao Museu de Arte Contemporânea
Dois bondes devem percorrer as ruas de Porto Alegre nas próximas semanas —provavelmente, sobre uma carreta rebaixada. É que a Polícia Civil doou dois veículos históricos para o Museu de Arte Contemporânea do RS (Macrs). Eles irão para a futura sede do museu, no Quarto Distrito, onde serão expostos ao público. De acordo com o diretor do Macrs, André Venzon, será feito uma campanha de crowdfunding para restaurá-los.
Os veículos haviam sido doados pela Carris nos anos de 1968 e 1970. São veículos com eixo duplo, construídos pela Osgood-Bradley em 1927 para a Worcester Street Railway, em Massachusetts, e enviados a Porto Alegre, em 1946.
Quando a Polícia Civil fazia carteira de habilitação, eles foram utilizados como espaço de atendimento ao público e para a realização de testes teóricos do exame. Os veículos ainda abrigaram o Museu da Polícia Civil, receberam o serviço de cartório do antigo Departamento de Trânsito e do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa, além de serem usados como depósito documental.