Nove anos depois de R$ 500 mil terem sido disponibilizados pelo poder público para a construção de uma creche que nunca foi erguida, em Porto Alegre, o Ministério Público concluiu que não há como apontar responsáveis pelo prejuízo e pela inexecução da obra.
O caso foi revelado por GZH no ano passado, mostrando que a parte da obra iniciada virou ruína condenada à demolição no pátio da Companhia Carris Porto-Alegrense. Na apuração de supostos atos de improbidade, o MP pediu o arquivamento pela dificuldade de provar quem seriam os envolvidos. Além disso, a possibilidade de responsabilização já está prescrita. No âmbito criminal, houve denúncia contra quatro pessoas pelo repasse e uso indevidos de valores.
Na promoção de arquivamento, o promotor Voltaire de Freitas Michel escreveu: "Por uma série de razões, sobretudo a incompetência de gestores nomeados politicamente, a creche nunca foi construída". E mais: "Nesse cenário, é difícil reconhecer um prejuízo ao patrimônio público que seja imputável a um agente público em especial, senão a toda a estrutura antiga e amadora da administração pública municipal. É mais um caso, dentre tantos, de desperdício sistêmico". A promoção de arquivamento está sob análise do Conselho Superior do Ministério Público.
O descaso envolvendo a construção da creche, que seria destinada especialmente a filhos de funcionários da Carris, começou em 2011, quando R$ 500 mil da Secretaria Municipal de Educação (Smed) foram repassados para a Carris por meio de um convênio. O que aconteceu a partir daí não tem muita explicação. A então presidência da Carris repassou metade do valor — R$ 250 mil — para a União Social dos Empregados, a USE Carris.
A obra foi iniciada, mas não foi adiante. Ainda assim, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) chegou a apontar gastos em compra de materiais supostamente destinados à creche mesmo depois de a construção estar paralisada. A apuração do MP registrou: "aprofundando-se nas razões pelas quais a obra não se realizou, e por que se operou o prejuízo aos cofres públicos, é de se reconhecer que ela é difusa, somente explicável pela triste prática ainda comum em todos os Poderes de indicações de gestores incompetentes para funções que estão muito além de suas capacidades".
A não realização da obra é explicável pela triste prática ainda comum em todos os Poderes de indicações de gestores incompetentes para funções que estão muito além de suas capacidades
MINISTÉRIO PÚBLICO
Na investigação do MP surgiu uma das razões que teriam contribuído para a paralisação da obra: o terreno destinado à creche estava em região para qual fora prevista a passagem de uma rua. Segundo a promotoria, isso poderia explicar, mas não justificar o abandono do projeto. Ainda conforme o MP, a parte do dinheiro que ficou com a companhia foi toda consumida. A metade destinada à USE ficou intocada em uma conta bancária até o ano passado, quando saques irregulares no valor de R$ 126,4 mil foram feitos.
Além da dificuldade em precisar exatamente quem teve responsabilidade pelos atos investigados, o MP também destacou a ocorrência de prescrição do caso: "os últimos gestores que tiveram alguma gestão sobre esse convênio afastaram-se de seus cargos em 2013, não mais cabendo a persecução do ato ímprobo".
Em 2019, a Carris anunciou que mandaria demolir a estrutura que chegou a ser construída. O trabalho não foi executado até hoje por falta de dinheiro. A Procuradoria-Geral do Município (PGM) tenta reaver o dinheiro. Corrigido, o valor é de R$ 814,8 mil. A Carris fez proposta de devolução parcelada, que já foi aceita pela prefeitura. Serão pagos R$ 250 mil e o saldo em 10 parcelas. Paralelamente, a Carris cobra, em ação judicial, da USE Carris a parte que ficou com ela.
Quatro denunciados por peculato e apropriação indébita
Além da apuração de improbidade administrativa, o MP conduziu investigação criminal que resultou na denúncia de quatro pessoas. João Antônio Pancinha Costa, presidente da Carris em 2011, Luís Fernando Coimbra Albino, diretor financeiro da Carris no mesmo ano, Rogério dos Santos Escouto, ex-presidente da Use Carris, e Cristiano Sperling Paim, ex-coordenador financeiro da entidade, foram enquadrados em peculato.
Para o MP, Paim e Albino teriam sido responsáveis pelo repasse ilegal dos R$ 250 mil para a associação dos empregados. A transferência não estava autorizada por lei ou contrato, conforme a promotoria.
O MP sustentou que o repasse preparou o cenário para crimes posteriores. Segundo a denúncia, Escouto e Paim teriam desviado, em proveito próprio e de terceiros, valores que pertenciam à Carris e à prefeitura. Em outubro do ano passado, reportagem do Grupo de Investigação da RBS mostrou que valores estavam sendo sacados da conta da Use Carris em que haviam sido depositados, em 2011, os R$ 250 mil. O GDI teve acesso a documentos que indicavam que havia na conta, naquele mês, R$ 280 mil, enquanto em julho de 2018, conforme extrato recebido pela Carris, o valor era de cerca de R$ 410 mil.
A reportagem mostrou, por exemplo, que R$ 40 mil foram transferidos para compra de uma caminhonete S-10 usada pelo então presidente Escouto. O veículo foi apreendido em janeiro deste ano, mais de um mês depois de Escouto ter renunciado à presidência da USE. A apreensão ocorreu durante investigação da 2ª Delegacia de Combate à Corrupção, que também embasa a acusação da promotoria. O prejuízo apurado pelo MP, conforme consta da denúncia, é de R$ 126,4 mil, valor total que teria sido sacado ou transferido pela dupla em 2019. Na denúncia, o MP pede também que os quatro acusados sejam condenados a ressarcir solidariamente o valor do prejuízo.
A denúncia ainda não foi analisada pela Justiça.
Contrapontos
O que diz Rogério Escouto:
"Acredito que essa denúncia é muito boa para buscar a verdade. Isso tudo faz parte de todo processo de denúncias que fiz nos meus oito meses de mandato, levantando inúmeras irregularidades. Ao denunciar veio à tona uma conta que para mim era exclusiva da associação e foi usada sim para recuperação da mesma, e que que hoje dizem ser parte do suposto dinheiro da creche. Dinheiro esse que jamais foi autorizado pela fonte de origem a ser depositado e ou repassado para a associação. Então ainda cabe a investigação se o que afirmam ser da creche realmente é. Assim sigo contribuindo com as investigações com o mesmo empenho que iniciei as denúncias em 2019".
O que diz Cristiano Sperling Paim:
"Não tenho conhecimento da denúncia".
O que diz João Antônio Pancinha Costa:
"Não tenho informação sobre a denúncia".
O que diz Jefferson dos Santos, advogado de Luís Fernando Coimbra Albino:
"Não temos conhecimento desta denúncia".
Trecho da promoção de arquivamento da apuração de improbidade administrativa:
"Eventuais atos ímprobos que causaram lesão ao erário culposamente, pelo início e não conclusão de obra pública, estão acobertados pela prescrição; eventual reparação ao erário com relação ao valor que foi 'enterrado' na obra não executada encontraria o obstáculo da definição específica da responsabilidade pela paralisação da obra, o que não foi possível na tramitação do inquérito civil; com relação aos aspectos penais, foi oferecida denúncia por peculato contra os gestores da CARRIS em 2011 e da USECARRIS em 2019".