Quando deixou o norte do Rio Grande do Sul há cinquenta anos, o menino João Pedro Miranda imaginava um dia se casar, criar na Capital uma família numerosa e viver em um lugar com sacada. Hoje, aos 61, alcançou os sonhos, mas com ressalvas significativas: a cerca da propriedade tem telhas de metal, o "vizinho" viaja a todo instante, ida e volta, até o Vale do Sinos, e a sonhada varanda tem como vista uma das rodovias mais movimentadas de chegada e saída de Porto Alegre. Ele vive em um contêiner, entre os trilhos do trem e a BR-116.
– Moro no limite. No limite mesmo, com gente tentando roubar fios elétricos, outros invadindo os trilhos. Mas não tenho dinheiro para pagar aluguel. Não roubo, não mato, estou indo à luta - conta.
O local tem apenas o teto visível aos motoristas que se deslocam de Esteio em direção a Canoas, entre as estações Petrobras e São Luís. Uma olhada no retrovisor apresenta a lateral do contêiner, protegida por três cachorros - um deles socorrido da rodovia, e adotado. O abandono de animais, recorrente segundo sua observação, é o ato que mais o entristece.
– Desumano - define.
Uma placa que anuncia “entrada proibida”, em letras garrafais, é menos receptiva do que o morador, que toma chimarrão tranquilamente em um sofá roxo de tecido desbotado, virado para os carros, rotina iniciada às 6h e que ocupa boa parte da manhã.
– Aqui é assim, movimento até a uma hora da madrugada. E até a meia noite tem o barulho do trem. Difícil descansar, mas fazer o que, né, se tenho que morar em algum lugar - diz.
Outro aviso divulga a profissão: chapa, auxiliar de caminhões que chegam à Região Metropolitana, trabalho que teve a demanda reduzida com o início da pandemia de coronavírus. Sentado na poltrona, ele mantém a esperança de ter seu serviço solicitado por algum transportador. Mas não teve qualquer trabalho na última semana. O relato sobre a queda no movimento é confirmado por um amigo de João, também chapa, Rudimar Silva Aveiro, 57 anos, companheiro de mate:
– Eu conseguia até três trabalhos por dia de chapa, agora não consigo isso em uma semana - afirma o morador de Nova Santa Rita.
O retângulo de aço tem seis metros de comprimento por 2,5 metros de largura. Hoje moradia, já foi seu espaço de trabalho, quando o terreno sediava um ferro-velho nos anos 1990. A empresa lhe proporcionou um emprego, mesmo com baixa escolaridade. Sem condições de manter o aluguel em um pequeno imóvel em Canoas, pediu para dormir no contêiner, de onde não saiu mais. Após a morte do dono do comércio de sucatas, João seguiu vivendo no terreno.
Internamente, a corrosão na lata indica o desgaste do tempo. Um televisor de tubo, uma geladeira com a porta amarrada com corda e um colchão ocupam o que seriam sala e cozinha. Na parede, um quadro de Nossa Senhora dos Navegantes foi pendurado ao lado de um banner que esconde as imperfeições e serve como pano de fundo para as ligações de vídeo com os netos. O contato virtual foi a maneira encontrada para matar a saudade, desde março. Isso quando tem créditos no telefone.
– No dia do aniversário da minha neta, há duas semanas, eu não tinha crédito para fazer a ligação. Mas aí depois ela me ligou. Desde que começou esse vírus aí eu não os abraço mais - lamenta.
Nascido em Mormaço, município de 3.113 moradores, próximo a Soledade, e com experiência de motorista e vigilante, lamenta a falta de oportunidades ao dizer que "ninguém da emprego a alguém de 61 anos".
Consultados, Trensurb e Departamento Nacional de Infraestrutura (DNIT) afirmaram que não há irregularidade no local.