Há quase duas décadas, Rogério Bernardes, 64 anos, vive de sonhos. Ironicamente, dorme pouco: quase todos os dias, levanta por volta das 6h e começa a preparação para estar, no começo da noite, no Largo Glênio Peres. Estaciona o carro em frente ao Mercado Público, abre o porta-malas e dá o play em uma gravação que, amplificada por um alto-falante, divulga seu negócio. No tom calmo de um mantra, a sequência de frases repetida à exaustão virou parte da rotina de quem circula pelo Centro Histórico:
"É o carro dos sonhos, freguesia. Sonhos de creme, sonhos de chocolate, sonhos com mumu e goiabada ao sonho. Sonhos bem fresquinhos e deliciosos. Sonhos por apenas R$ 1,50. E a promoção: leva quatro sonhos e paga só R$ 5. Leva quatro sonhos por apenas R$ 5", informa, pausadamente.
O anúncio sonoro só é interrompido quando os sonhos acabam – o que, nesse caso, é motivo para comemorar. Até que isso ocorra, não é incomum ver pequenos aglomerados em torno do Fiat Uno branco, à espera dos doces preparados por Rogério. Ele finaliza os pães recheados em uma mistura de açúcar e canela, e entrega-os em um pacote de papel, acompanhados de guardanapos.
– Esse é um sonho que é realidade – sorri um senhor engravatado.
– Pode colocar aí que é o melhor sonho de Porto Alegre – diz um cliente de mochila nas costas enquanto aguarda um combo com quatro.
Os comentários elogiosos se refletem nas vendas. Atualmente, o homem do carro dos sonhos comercializa, só na Capital – um dos filhos vende o produto em Guaíba, onde moram –, uma média de 400 doces por dia. Mas nem sempre a realidade foi tão próspera.
Quando começou, em 2002, mal contabilizava 50 em cada saída. Aprimorou a receita e foi fidelizando a clientela, que é heterogênea: abrange de trabalhadores do entorno a moradores da Região Metropolitana, das mais variadas faixas etárias. Aos finais de semana, como rescaldo da movimentação no Mercado Público, aparece até um pessoal "de carrão", segundo diz, que por vezes compram sem sair do veículo.
– No começo, parecia um bolinho de chuva. Fui pegando uma dica com um e outro, melhorando a receita, até que cheguei nessa. Agora, tem uma coisa que me comove: as crianças também gostam. É sinal que vai ter vida longa o meu sonho – diz Rogério, que prepara a famosa massa com ovos, farinha, leite, margarina, óleo, fermento, essência de baunilha, açúcar e sal.
Se hoje anima-se com a ideia de perpetuar seu legado, em outros tempos, sonhar alto esteve longe das possibilidades. Nascido em uma família humilde, Rogério começou a trabalhar aos oito anos no comércio do Centro. Já vendeu picolé, rapadura, pastel e café. O sonho veio na esteira dos outros negócios, quando observou um crescimento da demanda por doces. E, por diversas vezes, quase virou pesadelo.
A atuação como ambulante, recorda, teve períodos conturbados, com multas e apreensão de produtos – situação que, na avaliação dele, melhorou nos últimos anos. Apesar dos altos e baixos, deve ao comércio de rua a vida confortável que conquistou. Foi como ambulante que criou os três filhos, adquiriu casa, carro e um imóvel na praia – para onde ruma no verão, quando reduz a própria jornada a quatro dias semanais.
– Deus foi generoso comigo. Sempre sonhei em ter uma filha, e ganhei duas netas. Meus guris deram bom, tenho uma esposa com quem sou casado há mais de 40 anos. Estou bem de saúde. O que mais eu vou querer?
Atualmente, vende sonhos de terça a sexta à noite, e aos sábados e domingos à tarde – o estoque é limitado, e o expediente termina quando entrega o último doce. Faz questão de trabalhar uniformizado, com camiseta e boné personalizados, além de um avental branco.
Já o "carro dos sonhos", que já foi de, pelo menos, três modelos populares diferentes, é discreto. Sem adesivos, pintura ou emblemas, a principal estratagema para atrair o público até o veículo é a gravação monocórdia que ecoa pelo Centro quando o movimento arrefece. A tática tem dado resultado.
– Da primeira vez, escutei o barulho e vim procurando. Foi fácil de achar. Agora compro todo dia. É muito bom – sorri Fagner Silveira, que atua como fiscal de loja na Rua Voluntários da Pátria.
Gravação virou música
O que nem todos sabem é que a voz por trás da melancólica locução é do próprio Rogério. Não por vaidade. O plano inicial, conta, era gravar com um profissional.
– Cheguei no estúdio e o rapaz não estava muito bem da garganta. Como eu já tinha tudo na cabeça, como eu queria, disse que podia fazer. Gravei de primeira – orgulha-se.
O ritmo lento da fala foi proposital. Queria que a mensagem fosse facilmente compreendida, e que soasse diferente da agitação dos carros de propaganda. Gostou tanto do resultado que as únicas mudanças na gravação ao longo dos anos foram para atualizar o valor do doce – que, em 2002, custava R$ 0,50.
– Eu já ouvi cada coisa... Mas virou uma marca, né. Tem gente que já chega cantarolando minha música – sorri.
Meses atrás, a "música" à capela do vendedor de sonhos foi parar em outra, cheia de instrumentos. A banda Supervão, de São Leopoldo, usou a gravação na faixa "Carro dos Sonhos", cuja letra (que também lembra um mantra, com estrofes repetidas) remete ao negócio de Rogério: "Domingo no Centro / sentindo o doce / o doce, o doce dos sonhos" (escute abaixo).
A canção entrou no disco Faz Party, lançado neste ano. Voltaram para mostrá-la a Rogério – ficou tão contente que passou a divulgá-la como se fosse membro da banda.
– A gente estava pensando sobre características do Brasil, sobre quem é o brasileiro e o que faz para viver. Vimos isso na figura do ambulante. O Rogério fica no Centro, que todo mundo acha perigoso, mas está sempre tranquilo. É um modo de resistência corajoso, mas suave – conta o vocalista Mario Arruda.
Mais do que os sonhos, materiais e imateriais, a diversidade dos tipos que circulam pelo Centro também serviu de inspiração para a música da Supervão, que define o próprio som como "rave indie". A conclusão vem em forma de poesia:
"Cada um de nós são muitos / e são muitas. / A gente se aproxima / ao sonhar".