Falta de planejamento estratégico, desarticulação entre órgãos municipais e estaduais e altos custos de instalação explicam por que, com exceção do Centro Histórico e de pontos isolados, Porto Alegre não dispõe de uma rede subterrânea de transmissão de energia elétrica, modelo mais confiável e à prova de temporais.
Vários argumentos contribuíram nas últimas décadas para que autoridades adiassem iniciativas para mudar a forma de distribuição da capital gaúcha. Enterrar cabos de eletricidade pode custar até 15 vezes mais do que instalar uma rede aérea, composta por postes, transformadores e fios expostos ao ar livre. O investimento acabaria refletido no aumento da conta de luz. Também acabaria sobrando para o consumidor o gasto com adequações dos imóveis para receber energia. Sem falar nos impactos, por anos de obras, na circulação da cidade: escavar valetas para fios e abrir galerias para abrigar transformadores complicaria ainda mais o trânsito de uma cidade já soterrada por congestionamentos.
O debate sobre a migração de rede aérea para subterrânea retorna a cada forte temporal que atinge Porto Alegre. Em 15 de janeiro, cerca de 95 mil pontos da Capital chegaram a ficar sem energia elétrica por mais de 24 horas devido à queda de árvores e galhos sobre a fiação. Especialistas são unânimes em considerar que os prejuízos seriam mínimos se a cidade tivesse infraestrutura subterrânea de transmissão de energia, mais segura e confiável. Mas até que ponto os porto-alegrenses estariam dispostos a pagar pelos custos de instalação?
No Centro, R$ 11 milhões em 460 km de fiação
Uma mudança de sistema exigiria articulação entre a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), diversas secretarias municipais e empresas de TV a cabo e telecomunicações, já que fios de eletricidade compartilham, em geral, o mesmo poste com cabos de outros serviços. Quem arcaria com os custos de implantação?
Prefeitura e CEEE não dispõem de estudos de viabilidade técnica para a ampliação da rede subterrânea hoje existente. Mas um parâmetro dos altos custos é o gasto da CEEE com a manutenção no Centro Histórico. Em 2019, a estatal investiu R$ 11,9 milhões nos 460 quilômetros de fiação subterrânea. O valor aproxima-se do que a empresa gastou, no mesmo período, em toda a rede aérea da cidade (R$ 13,9 milhões, em 4.541 quilômetros de extensão).
Outro exemplo dos gastos elevados para a hipotética implantação de sistema subterrâneo em toda a Capital é o investimento na nova orla do Guaíba. Toda a fiação do sistema de iluminação pública e de distribuição de energia no local está debaixo da terra. No trecho 1, já concluído, a prefeitura investiu R$ 5,5 milhões na abertura de valetas e no enterramento de fios no 1,3 quilômetro de extensão entre a Usina do Gasômetro e a Rótula das Cuias. A CEEE gastou outros R$ 10,5 milhões para ligar cabos entre as subestações Menino Deus e Porto Alegre 4, próximo ao shopping Praia de Belas. Segundo a estatal, não serão necessários mais investimentos para os novos trechos na área
Pelo menos R$ 19,2 bilhões para implantar em toda a cidade
Levando-se em conta apenas o que investiu a prefeitura na orla, uma projeção para enterrar toda a rede aérea de Porto Alegre indica que seriam necessários, no mínimo, R$ 19,2 bilhões. No entanto, especialistas salientam que essa estimativa não leva em conta gastos extras. Como os mapas subterrâneos da cidade não são precisos, há riscos de se perfurar ruas, avenidas e calçadas e atingir outras redes, como as de gás e fibra ótica, além de encanamentos.
Pode-se projetar rede subterrânea em uma rua, uma quadra, um grande investimento como o da orla (...) mas, para a cidade como um todo, em um futuro próximo, é muito difícil
NELSON MARCHEZAN
Prefeito de Porto Alegre
Essa é uma das ponderações do prefeito Nelson Marchezan. Ele lembra que um projeto de rede subterrânea em uma área como a orla, praticamente sem obstáculos no subsolo, é mais fácil de ser executada do que no restante da cidade.
— Pode-se projetar rede subterrânea em uma rua, uma quadra, um grande investimento como o da orla, que tem uma questão arquitetônica que traz um benefício, que cobre o custo, mas, para a cidade como um todo, em um futuro próximo, é muito difícil — avalia Marchezan.
Os custos com manutenção da estrutura também são altos, defende o chefe do serviço de rede subterrânea da CEEE, Renê Reinaldo Emel Júnior. Ele explica que, enquanto a céu aberto técnicos conseguem identificar problemas apenas observando possíveis cabos rompidos, nos subterrâneos da cidade a operação é mais complexa: exige, por exemplo, a presença de engenheiros para operar um equipamento chamado Laboratório de Ensaios Elétricos, capaz de detectar falhas onde o olho humano não alcança. Só depois de identificado o local exato de um fio rompido por ratos, por exemplo, é que os operários escavam a via.
— Não posso escavar a cidade inteira para achar um defeito em um cabo. Na rede aérea tu vês um cabo rompido, um defeito. Na subterrânea, não. Então, o reparo na subterrânea é muito mais complexo e demorado. Pode demorar dias para que se restabeleça uma rede com defeito — explica Emel Júnior.
O custo da mudança do sistema de Porto Alegre, segundo a CEEE, acabaria sendo compartilhado por todos os 1,7 milhão de clientes dos 72 municípios atendidos pela concessionária. Ou seja, moradores de outras cidades pagariam a conta de luz mais alta para que os cidadãos da Capital tivessem um sistema mais robusto.
— É uma questão de se medir custos e benefícios. O cidadão quer enfrentar obras, transtorno de trânsito, aumento de tarifa para ter mais confiabilidade e melhor qualidade de energia? — questiona o engenheiro.
Para o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS), Tiago Holzmann da Silva, trata-se de discutir prioridades de gestão. Segundo ele, quando agentes públicos destacam os custos da implantação de um sistema subterrâneo, não levam em conta a economia representada a médio prazo para uma rede com menor chance de ter problemas. Dados das distribuidoras de energia mostram que mais de 90% das quedas no fornecimento são causadas por danos aos cabos aéreos.
— Em geral, não são contabilizados os custos de durabilidade. A rede subterrânea é mais cara para instalar, mas tem mais durabilidade e segurança, porque não há necessidade de redes auxiliares – afirma Holzmann Silva.
Plano instaurado em 2015
Em março de 2015, um grupo de trabalho integrado por representantes da Secretaria Municipal de Urbanismo (Smurb), da Secretaria Estadual de Minas e Energia, da CEEE, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e da Sulgás foi criado para a construção de normativas para a implementação de fiações subterrâneas em Porto Alegre. Mas o processo não avançou.
– Começamos a conversar, só que o negócio morreu logo em seguida. No Masterplan, que trata sobre o plano de desenvolvimento da região do 4º Distrito, pensamos na criação de uma rua que seria uma experiência de fiação subterrânea para o restante da cidade. Era fruto do que vimos em Barcelona. Mas, quando fomos conversar, vimos que seria muito caro – lembra o vereador Valter Nagelstein (MDB), que à época era o titular da Smurb
Uma rede subterrânea não precisa ser escavada a mais do que 60 centímetros da superfície. Não é um metrô, nem uma galeria de esgoto.
BENAMY TURKIENICZ
Professor da faculdade de Arquitetura da UFRGS
Na capital catalã, o então secretário conheceu um modelo de implantação de cabos subterrâneos que, segundo ele, era “pouco destrutivo” – com impactos mínimos nas calçadas e avenidas.
Consistia em uma valeta de 60 centímetros de largura e meio metro de profundidade, aberta por uma retroescavadeira pequena, entre o leito da rua e o meio-fio. No local, uma caixa de concreto pré-moldado abrigaria, além dos fios de energia elétrica, cabos de telecomunicações, e, isoladas, tubulações de água, gás e fibra ótica.
Coordenador do Núcleo de Tecnologia Urbana da UFRGS e professor da Faculdade de Arquitetura da mesma universidade, Benamy Turkienicz minimiza os impactos da implantação do sistema de olho nos ganhos arquitetônicos e de segurança que a rede subterrânea proporciona:
– Uma rede subterrânea não precisa ser escavada a mais do que 60 centímetros da superfície. É bem superficial. Não é um metrô, nem uma galeria de esgoto. A paisagem sem fiação é muito mais agradável.
Especialista do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina), Roberto Pereira d’Araujo aponta as dificuldades financeiras enfrentadas pelas concessionárias como empecilho para se pensar projetos de grande porte como o enterro de fios de uma cidade como Porto Alegre.
– É um dos dilemas do setor elétrico brasileiro. Enterrar fios exige bilhões de reais, e as distribuidoras vão argumentar que precisam ganhar dinheiro. É caro, mas, ao longo do tempo, se mostra mais vantajoso – avalia.
Companhia enfrenta dificuldades
Há gargalos estruturais na prestação de serviços pelas concessionárias que exigem priorização. A CEEE ocupa a penúltima posição no ranking de qualidade da Aneel, referente a 2018 – está em 29º, à frente apenas da Enel Distribuição Goiás, conhecida anteriormente como Companhia Energética de Goiás (Celg). Os resultados são medidos por dois indicadores: a Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (DEC) e a Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (FEC). O primeiro mede o tempo das interrupções do fornecimento de energia e o segundo, o intervalo com que os problemas ocorrem.
Nos últimos anos, a CEEE-D (braço de distribuição do grupo estatal) conseguiu melhorar os serviços aos consumidores, mas não o suficiente para atingir as metas estabelecidas pela Aneel.
Além disso, a empresa enfrenta problemas financeiros – teve prejuízo líquido de R$ 535,1 milhões no terceiro trimestre de 2019 (o resultado anual ainda não foi divulgado). O governador Eduardo Leite sinalizou que trabalha para realizar a privatização da estatal até setembro de 2020.
A estimativa de débitos de ICMS da CEEE-D com o governo do Estado está entre R$ 2,8 bilhões e R$ 3 bilhões.