A procuradora federal Selma Drumond Carvalho, da Advocacia-Geral da União (AGU), revisou uma petição que havia incluído nos autos do processo judicial que discute a desocupação da Vila Nazaré, em Porto Alegre, ação necessária para a obra de ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho em 920 metros. Ela se pronunciou no caso em nome da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) por ser membro da AGU, que faz a advocacia para os órgãos da União.
No novo parecer, juntado na última quinta-feira (18), o fato novo é a afirmação de que a Anac considera não ter atribuição de fiscalizar o destino das famílias que serão removidas.
A procuradora avaliou que os pedidos do Ministério Público Federal (MPF), autor da ação civil pública contra a Anac, não encontram guarida jurídica. Dentre os principais itens, o MPF requer que a Anac fiscalize a Fraport na remoção e busca de nova solução habitacional para o reassentamento e realocação dos moradores da Vila Nazaré. Para a procuradora, o papel da Anac se limita à fiscalização da aviação civil. A forma como a Fraport fará a desocupação da área, diz o parecer, é tema que foge da competência da agência.
"O contrato de concessão não estabelece a modalidade e o prazo e tampouco se imiscui nos aspectos procedimentais pelos quais a concessionária se desincumbirá dessa respectiva providência. (...) A técnica ou método que serão utilizados pela concessionária para efetivar e concretizar a desocupação da área necessária aos investimentos previstos no contrato de concessão escapam à competência da Anac", diz trecho da manifestação da procuradora.
Ao mesmo tempo em que retirou da agência qualquer atribuição sobre o modo de desocupação, a AGU "corrigiu equívoco" de manifestação anterior, quando, no último dia 16, a mesma procuradora havia apresentado parecer nos autos opinando que "o contrato de concessão não prevê gastos com desapropriação".
A procuradora pediu a exclusão desta manifestação do processo e, no novo documento, reafirmou que "caberá à concessionária tomar todas as medidas necessárias à imissão de posse nas áreas ocupadas por terceiros, arcando integralmente com o ônus decorrente de tais providências". Atualmente, cerca de 1,5 mil famílias vivem no terreno e as tratativas para a desocupação não avançaram, embora duas soluções habitacionais tenham sido construídas pelo governo federal para receber os moradores, uma no bairro Sarandi e outra no Rubem Berta. Há divergência sobre a necessidade de construção de terceira opção residencial aos retirantes.
A AGU ainda citou a "matriz de risco" que cabe à concessionária e disse que os R$ 146 milhões citados pelo MPF na ação como valor a ser investido pela Fraport no processo de desocupação não encontra respaldo jurídico. A cifra consta no Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVETEA), mas a avaliação é de que se trata de um documento de prospecção, prévio ao contrato de concessão do aeroporto, que não acarreta obrigação ao concessionário.
"Importa (...) que o investimento seja realizado (ampliação da pista). Se, para tanto, é necessária a realocação de famílias que ocupam o sítio aeroportuário, essa atividade de meio não é objeto de fiscalização e de interveniência do poder concedente. Assim é que as variações no custo da obrigação de desocupação, para mais ou para menos, são atribuídas exclusivamente à concessionária. (...) A inexistência de vinculação de valores máximo ou mínimo a serem despendidos na realização da desocupação da área do sítio aeroportuário é bem compreendida na matriz de risco contratual, a demonstrar que esse custo não reproduz qualquer repercussão na equação econômico-financeira inaugural do contrato", atestou.
Este item, indicando que eventuais despesas não implicam revisão contratual, é outra mudança no parecer da procuradora. No anterior, agora retirado da ação, ela havia registrado que eventuais dispêndios de desocupação poderiam interferir no equilíbrio econômico-financeiro do negócio.
Na retificação de parecer, a representante da AGU ainda solicitou que a 3ª Vara Federal de Porto Alegre, onde corre a ação, reveja a liminar que suspendeu a desocupação paulatina da Vila Nazaré até uma audiência de conciliação em 8 de agosto.
No último parágrafo do documento, a procuradora citou que, constitucionalmente, políticas de habitação são de responsabilidade dos municípios. A Anac comentou o episódio: "Houve um equívoco no documento que foi juntado aos autos. A Procuradoria Regional Federal da 4° Região, na data de 18/04, apresentou a manifestação retificadora e solicitou à juíza da causa a retirada do documento em questão".
Em contato com a reportagem, a assessoria de comunicação da agência acrescentou que "o contrato de concessão prevê de forma esclarecedora que são de responsabilidade da concessionária as desocupações de áreas localizadas no sítio aeroportuário, arcando com os custos decorrentes".
Veja a íntegra do novo parecer
Parecer reforça posições anteriores da Anac
A retificação de posicionamento da AGU na 3ª Vara Federal de Porto Alegre reforça as posições anteriores da Anac sobre a tarefa de desocupar a Vila Nazaré.
No ofício 86/2018, assinado pelo superintendente de Regulação Econômica de Aeroportos, Tiago Sousa Pereira, a Anac registra que "de acordo com o referido pacto contratual, constitui objeto da concessão a execução de uma série de obrigações imputadas à concessionária durante todo o seu prazo de vigência, dentre as quais destaca-se a integral responsabilidade pela desocupação de áreas localizadas no sítio aeroportuário, em posse ou detenção de terceiros, prévias ou posteriores à celebração do contrato". O documento ainda cita que são "riscos suportados exclusivamente pela concessionária os custos decorrentes das desocupações do sítio aeroportuário, bem como de eventuais reassentamentos e realocações".
O outro item que revela a posição da Anac é a ata de uma reunião realizada com membros do Ministério Público Federal (MPF), em Porto Alegre, no dia 3 de abril de 2019. Ao final da discussão, o MPF redigiu um documento de oito páginas com as conclusões de consenso.
"Pela Anac foi afirmado que o entendimento da agência reguladora, à luz do contrato, é de há responsabilidade da Fraport na desocupação e que eventual custo decorrente de reassentamento não gera direito a reequilíbrio econômico-financeiro", diz a ata, assinada pelo procurador-geral da Anac, Gustavo Albuquerque.
A Fraport tem manifestado que "não há custo" a ser suportado por ela. Para a empresa, as famílias deveriam se deslocar para os dois condomínios já construídos pelo governo federal e liberar a área da Vila Nazaré para o início de obras de prolongamento da pista, que devem estar finalizadas até o 52º mês da concessão. Diante das posições divergentes, a decisão final sobre ritos e responsabilidades na desocupação da Vila Nazaré deverá ser da Justiça Federal.
Contraponto
O que diz a Fraport
"De acordo com o último parágrafo da nova petição da Anac, está clara a conclusão da agência reguladora no sentido de que o reassentamento é uma atribuição constitucional do município. A Fraport tem sim a obrigação de desocupar e todos os custos inerentes a essa desocupação. Isso não se confunde com reassentamento. Todos os custos de ajuizar ações de reintegração de posse, por exemplo, são da Fraport. O contrato de concessão não estabelece a forma de desocupação. Não há obrigação de reassentar. A concessionária precisa desocupar e deverá escolher a forma de fazer isso.
Nunca negamos isto (custos de desocupação), mas o custo não significa custo com reassentamento e a própria Anac deixa claro isto. O custo de desocupação é o custo com reintegração de posse, dentre outros. O último parágrafo do documento da Anac deixa clara a questão de quem é a responsabilidade para reassentamento e os impactos."