O contrato de concessão do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, assinado em julho de 2017 entre a empresa alemã Fraport e a União, cita ao menos seis vezes que os custos decorrentes de desocupações, remoções, desapropriações e indenizações de moradores para liberar áreas em que estão previstas obras de ampliação do terminal são de responsabilidade da concessionária.
Na página 24 do contrato, que faz parte do capítulo de "direitos e deveres" dos envolvidos, está determinado à Fraport: "Promover a desapropriação dos imóveis necessários à realização de investimentos ao longo da concessão cuja fase executória não tenha ainda sido iniciada, e indenizar seus proprietários". O item cita que deverá ser observado, para os procedimentos, o inciso oitavo do artigo 29 da Lei de Concessões, o qual diz que podem ser declarados de utilidade pública os bens necessários para a execução de obra, com autorização para desapropriações, sendo da concessionária "a responsabilidade pelas indenizações cabíveis".
No momento, o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) estão em disputa judicial com a Fraport. Os órgãos alegam que a empresa não está aceitando pagar pela remoção da Vila Nazaré. São cerca de 1,5 mil famílias — nem todas estão no curso da intervenção — que precisam ser reassentadas para que aconteça a obra de extensão da pista do aeroporto, que será ampliada em 920 metros. As famílias da Nazaré deverão ser realocadas em dois condomínios já construídos pela União, um no bairro Sarandi e outro no Rubem Berta. MPF e DPU cobram que a Fraport indenize o governo federal em R$ 146 milhões devido aos gastos com os loteamentos. A concessionária ainda teria de negociar com os moradores da Nazaré que não aceitarem se mudar para as moradias ofertadas. A Fraport, no início da polêmica, declarou que "não há obrigação no contrato de concessão que imponha o custo" das transferências. Também disse que as soluções habitacionais foram construídas pelo poder público. Nesta terça-feira (16), a reportagem questionou a Fraport sobre os itens contratuais que lhe atribuem os custos, mas a empresa afirmou que "somente se pronunciará após decisão judicial definitiva".
Todas as menções do contrato e dos anexos sobre as obrigações da Fraport quanto às desocupações, desapropriações e indenizações são genéricas. As cláusulas imputam ao concessionário as responsabilidades, mas não há citações explícitas a comunidades como a Vila Nazaré. Exemplo disso consta na página 8 do anexo 2, onde é descrito o Plano de Exploração Aeroportuária (PEA): "Caberá à concessionária tomar todas as medidas necessárias à imissão de posse nas áreas ocupadas por terceiros (...), arcando integralmente com o ônus decorrente de tais providências".
Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, do MPF, Enrico Rodrigues de Freitas diz que a modelagem inicial da obra de extensão da pista do aeroporto previa a sua realização pelo poder público. Como consequência, foram implementadas as soluções habitacionais hoje disponíveis nos bairros Sarandi e Rubem Berta. Depois, diz o procurador, a modelagem mudou e a União decidiu fazer a concessão do Salgado Filho à iniciativa privada. Neste momento, ocorreram audiências públicas, em 2016, "em que a responsabilidade do setor público pelas realocações e remoções foi intencionalmente excluída da minuta de contrato, deixando a atribuição com o concessionário", argumenta Freitas.
— São fatos conhecidos há anos. Não é de se esperar que uma empresa participe de leilão deste porte e não tenha conhecimento das obrigações, estudos técnicos e de viabilidade. Todo o histórico de exclusão da responsabilidade do poder público é conhecido. Não vejo margem para dizer que não estava claro — avalia o procurador, um dos autores da ação judicial contra a Fraport.
Ele ainda explicou que o pedido para que a empresa alemã restitua o poder público pela construção dos dois condomínios que estão recebendo moradores da Vila Nazaré não se dê em forma de pagamento ao cofre público, mas em construção de novas unidades habitacionais que sirvam como terceira opção para os desapropriados.
A juíza Thais Helena Della Giustina, da 3ª Vara Federal de Porto Alegre, concedeu liminar no último sábado (13) para suspender a segunda fase de transferência dos moradores da Vila Nazaré até que seja realizado o cadastramento de todos que vivem na área destinada à ampliação da pista do aeroporto. A magistrada manteve as 128 mudanças que já ocorreram ou estão programadas, incluídas na primeira etapa de realocações. Foi dado prazo até 8 de agosto para que a Fraport providencia o cadastramento completo. Neste dia, está prevista audiência de conciliação entre as partes.
O complexo trabalho tem outro componente de tensão: moradores que aceitaram ser reassentados nos condomínios do Sarandi e do Rubem Berta estão sendo ameaçados por traficantes de drogas que dominam a região. Agentes públicos que tentaram ingressar em dois becos da região, conhecidos como Pepino e Lampião, foram impedidos de fazer isso por pessoas ligadas à facção local. A Polícia Civil fez operação no local no dia 10 de julho. Foram cumpridos 55 mandados de busca e apreensão para coibir tráfico, roubos e receptação.
Os trechos que citam a responsabilidade da concessionária
Contrato de concessão
Plano de Exploração Aeroportuária (PEA)
Confira a íntegra dos documentos
Contrato de concessão
Plano de Exploração Aeroportuária (PEA)