Quem se aproximou das margens do Guaíba depois da revitalização da orla – cuja recém anunciada extensão gera expectativas nos frequentadores – pode achar que a relação afetiva dos porto-alegrenses com o local é recente. Mas a história mostra que a Capital é tão dependente de seu manancial que estabeleceu com ele uma relação antropofágica: foi devorando a areia de suas profundezas que, de aterro em aterro, a cidade cresceu, apropriando-se de parte da enseada.
– A relação de Porto Alegre com o Guaíba é determinante. Se ele não existisse, não haveria a cidade. O núcleo urbano se instalou por ser um ponto estratégico junto à água – observa o arqueólogo Alberto Tavares.
Pouco mais de um século atrás, acompanhar o ocaso mais famoso da cidade na altura da Orla Moacyr Scliar só seria possível de dentro de uma embarcação. A região central era originalmente um morro estreito que se projetava para dentro do Guaíba, tendo como cume a atual Rua Duque de Caxias. As margens iam até a Rua da Praia e a atual Rua Voluntários da Pátria, na face norte, e a Rua Washington Luís e a Avenida Praia de Belas, no lado sul.
Os primeiros aterros, realizados no século 19 – os últimos seriam feitos na década de 1970 –, foram menores e esparsos, pequenos avanços sobre o manancial para a expansão de terrenos particulares. Mas logo a demanda por novos espaços somada à necessidade de qualificar o porto fizeram com que a ocupação da margem fosse promovida pelo poder público. Como resultado, aterros executados ao longo de décadas triplicaram a área da península.
– Várias cidades se desencadearam para a zona portuária. Aconteceu assim no Rio de Janeiro, em cidades do Norte do país, e também em Porto Alegre – destaca a pesquisadora Maria Dalila Bohrer.
As medidas tiveram impactos significativos no Centro Histórico, onde a atividade comercial – sempre relacionada com a água –, concentrava-se no eixo entre a Praça da Alfândega e a Praça da Harmonia (atual Praça Brigadeiro Sampaio). Entre o final do século 19 e as primeiras décadas do século 20, prédios emblemáticos como o Mercado Público, o Paço Municipal, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS, na antiga sede dos Correios e Telégrafos), a Casa de Cultura Mario Quintana e a Usina do Gasômetro foram construídos sobre áreas aterradas.
Em 1914, o chamado Plano de Melhoramentos municipal projetou o novo cais e previu o avanço em direção ao Guaíba por mais dois modernos quarteirões, cortados por largas vias: Siqueira Campos, Júlio de Castilhos, Mauá. Hoje um dos ícones do descaso da cidade com o patrimônio histórico, o Cais Mauá foi inaugurado em 1921, reafirmando a relação entre o desenvolvimento econômico da cidade e o Guaíba – mais tarde, em 1940, iniciaram-se também sobre aterro as obras do Cais Navegantes. A Rua Sete de Setembro tornou-se o eixo de ligação da Alfândega com a Harmonia, os dois polos comerciais da região.
– O que se percebe através das pesquisas é que essa era e segue sendo a área mais dinâmica do Centro. Se hoje se debate o que fazer com o Cais, em anos anteriores se debateu a área da Usina do Gasômetro. Vai ser sempre o lugar onde a cidade está em transformação (a Orla) – diz o arqueólogo.