O nível de dificuldade de encontrar cigarros contrabandeados no Centro Histórico de Porto Alegre fica evidente desde o início desta reportagem. Desembarco do carro disposto a circular por alguns pontos de referência da região. O primeiro deles seria um centro de compras. Ao colocar pé no primeiro degrau da escadaria de acesso — nem no segundo, nem no terceiro, no primeiríssimo — uma mão repousa sobre o ombro. Viro para o lado e deparo com um senhor magro, grisalho, cerca de 50 anos, com um sorriso amistoso.
— O que você veio comprar, jovem?
— Cigarro.
— Ali, ó.
E aponta um rapaz com uma pequena bolsa de viagem no ombro. Ele percebe o gesto e vem até mim negociar os produtos. Difícil assim.
Segundo pesquisa de 2017 divulgada pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), o cigarro mais consumido no Brasil não é nenhuma das marcas que patrocinavam festivais de música, corridas de Fórmula 1 ou vendiam um estilo de vida glamouroso em suas propagandas nas décadas passadas.
O líder de vendas no Brasil é o Eight, marca paraguaia, com 12,6% de participação no mercado. Além dele, há outras três marcas que só chegam ao Brasil por contrabando entre as 10 marcas mais vendidas (Gift, Classic e San Marino). Juntas, as quatro respondem por 31% das vendas no Brasil. O mercado informal, como um todo, segundo o instituto, responde hoje por 48% das vendas.
Esse dado provoca um fenômeno inusitado. Diferentemente de produtos frequentemente pirateados — como roupas, tênis, óculos e eletrônicos —, as grifes mais famosas de cigarro não são as mais copiadas. As marcas mais pirateadas de cigarro no Brasil são também as paraguaias. Ou seja: dentro de um universo de produtos já ilegais, por entrarem no Brasil via contrabando, o mercado paralelo abrange também cópias fraudulentas desses produtos.
Abordagem fica restrita ao entorno de centro comercial
Por dois dias, GaúchaZH frequentou o Centro Histórico para entender os comportamentos de quem vende e de quem compra os cigarros na região, especialmente os ilegais. Encontrou um comércio difuso, aquecido e completamente ambulante. É muito difícil encontrar algum estabelecimento comercial que corra o risco de responder ao artigo 278 do Código Penal, o de crime à saúde pública, cuja pena é de um a três anos de prisão e multa.
De acordo com o artigo, é proibido "fabricar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender ou, de qualquer forma, entregar o consumo coisa ou substância nociva à saúde". É por isso, como ocorreu na cena narrada no início desse texto, que pessoas rondam os centros de compras para oferecer cigarro à freguesia antes de eles adentrarem nesses locais, onde a venda é proibida e respeitada.
À boca pequena, os donos de botecos e minimercados da região dizem que a venda "não vale a pena o estresse". O máximo que fazem, e isso todos fazem, é a venda de cigarros das marcas mais baratas por unidade. Se o objetivo é comprar cigarro paraguaio, os mais solícitos saem de trás do balcão e apontam um vendedor camarada na rua.
Nas ruas movimentadas, todavia, o comércio dos paraguaios é tão particular que o cigarro ilegal, muitas vezes, nem é chamado de cigarro. Tem nome próprio.
Muito prazer, Bill
Me aproximo de uma senhora que obedece ao perfil costumeiro dos vendedores – há, pelo menos, dois deles em cada quadra movimentada do Centro. Ela circula pelas marquises da Rua dos Andradas sem muito rumo, apenas para não ficar parada no mesmo lugar. Carrega uma ecobag de supermercado debaixo do braço, pontiaguda pelos pacotes retangulares. Pergunto se ela tem cigarro. Ela me olha estranho:
— Tu quer cigarro, cigarro ou tu quer Bill?
Bill é a marca paraguaia mais vendida na Região Sul, segundo o levantamento do Etco. Mas, no Centro Histórico, o termo virou mais do que isso. Bill virou um apelido para qualquer cigarro paraguaio. Embora, no caso, essa senhora vendesse também as marcas Gift e Classic. O preço também difere pouco de ambulante para ambulante. A carteira custa R$ 3 a unidade, mas "quatro Bills" custam R$ 10. O pacote de 10 carteiras sai por R$ 25.
— É difícil quem compre o pacote. A não ser que seja alguém comprando pro mês, mas é bem raro — conta a ambulante.
De fato, não é comum a venda em maiores quantidades. Na volta da Esquina Democrática — onde se observa o que há de mais próximo de um ponto físico de venda: um homem sentado em um banquinho, em frente a uma sacola grande de pacotes — o vendedor estranha a quantidade de perguntas sobre os preços:
— Pra que tu quer comprar pacotes? É para entrar no presídio?
Digo que é só pesquisa de preço mesmo. Ele vende o pacote de 10 unidades de Bill um pouco mais barato, por R$ 23. Ele explica, não nessas palavras, se tratar de um intermediário. Vende a carteira por R$ 3 diretamente ao consumidor, mas vende também para os colegas revenderem nas ruelas do entorno. A maioria dos que vendem circulando com a sacola debaixo do braço confirmam: a cada 10 carteiras vendidas a R$ 3 a unidade, faturam R$ 7.
Além desse tipo de fornecimento, GaúchaZH testemunhou outro. Às 16h50min, meia dúzia de vendedores ambulantes de sacolas vaziam se aproximam de uma esquina tranquila da Rua Comendador Manoel Pereira, é o mesmo ponto em que passageiros aguardam transportes clandestinos para municípios da Região Metropolitana. Uma Zafira estaciona e abre rapidamente o porta-malas cheio de pacotes. Os vendedores se servem, pagam em dinheiro e evaporam em segundos.
Preço e necessidade
Próximo ao Terminal Parobé, já escolado de que o nome da marca é um sinônimo de cigarro do Paraguai, me aproximo de uma tabacaria perguntando se ele "vende Bill".
— Não, não. Só o nacional.
A marca é um caso tão curioso que o Bill paraguaio ganhou uma cópia legalizada, nacional. O Bill brasileiro é produzido pela Cia Sulamericana de Tabacos, sediada em Duque de Caxias (RJ). É comercializado com o selo de IPI conforme manda o figurino. Ele me alcança uma carteira.
— Mas não vende quase nada, porque é mais caro, né? O nacional custa R$ 4,50.
— E tem diferença?
— Olha, o que me dizem é que é ruim igual.
Conversando com alguns fumantes dos cigarros paraguaios, percebe-se que gosto é o que menos importa. Fazem comparações entre as marcas contrabandeadas. Um é mais ou menos forte do que outro. Provoca mais ou menos mal-estar, mas nenhum tem o gosto elogiado. Todos eles apenas suprem da forma menos custosa o clamor do organismo por nicotina.
Pergunto a uma fumante de 45 anos que trabalha como faxineira de um banco vizinho à Praça da Alfândega, fumante de um Gift, se ela aprecia o gosto do cigarro. Ela responde com uma careta e uma risada. Fuma apenas pelo vício, há mais de 20 anos. Odeia o gosto. Tentou parar sete vezes e desistiu. Não vale a pena gastar um pouco mais por um produto de procedência reconhecida? Ela sacode a cabeça para os lados.
— Primeiro porque precisa gastar demais para comprar um bom. E a verdade é o seguinte: quando tu vive com o salário mínimo, tu gasta o mínimo.
"Pobres e tristes"
De acordo com o Ministério da Saúde, o número de fumantes no Brasil diminui 0,59 ponto percentual ao ano. Nos últimos 10 anos, o índice caiu de 15,6% para 10,1% — em Porto Alegre, o índice atual é 12,5%. Embora o avanço seja comemorado, há um viés cruel que o poder público de saúde tem dificuldade de resolver.
Ao mesmo tempo que o aumento de tributação se mostra uma ferramenta eficiente para incentivar a redução de consumo, empurra para a ilegalidade o fumante de menor poder aquisitivo, sacrificando a sua saúde ainda mais. É uma das explicações para o consumo de cigarros ilegais no Brasil ter avançado de 29% para 48% em apenas cinco anos.
O ministério não cruza os dados renda e tabagismo, mas, em escolaridade, o grupo mínimo é também o que mais consome. Entre quem tem zero e oito anos de escolaridade, 13,2% fumam. No grupo com 12 ou mais anos de escolaridade, o índice cai para 7,4%.
— Fumante que sobrou é um sujeito pobre e triste — comenta o balconista de uma banca de revistas na Otávio Rocha, por coincidência, ex-funcionário de uma empresa tabagista de Venâncio Aires.
Ele comenta sobre o antigo trabalho:
— Sabe por que o cigarro paraguaio tem um gostinho de terra? É porque tem terra mesmo. O fumo que mandamos ao Paraguai é o que cai das esteiras no chão. Por isso, quando os laboratórios analisam e encontram insetos, mato e terra. O melhor fumo não fica nem no Brasil, é exportado direto para a China.
Enquanto conversamos, por cerca de 20 minutos, não se passou mais de um minuto sem que entrasse alguém para comprar cigarro. Quase sempre em unidade, para suprir a necessidade imediata de nicotina com as moedas do bolso. A carteira mais barata é a do Minister: custa R$ 5,50. Não por acaso, é a marca nacional mais vendida do Brasil.