Aos 14 anos, após enfrentar a resistência da família para manter a gravidez precoce, Marcia Beatriz dos Santos decidiu colocar no filho um nome que começasse pela letra A: André. Não queria que, como no seu caso, ele precisasse esperar muito tempo nas chamadas em ordem alfabética. Agora, 32 anos depois, o corpo que ela garante ser de André Luís Santos da Rosa repousa em uma gaveta do Departamento Médico Legal (DML). Está lá desde 2016, aguardando uma certidão de óbito com seu nome.
Quando pisou no DML para liberar o corpo do filho, há quase dois anos, Marcia pensava que um exame de DNA comprovando o parentesco e os trâmites para o enterro fossem a última etapa burocrática da despedida de André. Até hoje, a faxineira de 46 anos não alcançou este objetivo.
À época com 30 anos, André deixou de responder as mensagens da mãe em 4 de outubro de 2016. Nos últimos registros, se dizia feliz: havia engatado um namoro com uma jovem da região onde morava, o Beco Guará, no bairro Guarujá, zona sul de Porto Alegre. Quatro dias depois, quando o pai, o trabalhador da construção civil Leoni Miguel Souza da Rosa, 56 anos, foi até sua casa, encontrou apenas móveis quebrados. A família registrou ocorrência na Polícia Civil. No fim daquela tarde, policiais encontraram um corpo queimado a alguns metros da residência de André – para a investigação, que ainda está em andamento, trata-se de um assassinato relacionado ao tráfico de drogas.
– Não quero saber quem fez isso com ele, não quero saber de nada. Só quero enterrar o meu filho com o nome que dei a ele – diz Marcia.
Mãe se nega a enterrar sem a certidão de óbito
Devido ao estado do corpo, não foi possível fazer o reconhecimento, apenas a identificação do sexo: masculino. E o exame de DNA não resolveu a questão: o laudo elaborado pelo DML diz que não é possível "estabelecer a identificação do cadáver", já que ele pode "pertencer a qualquer um dos filhos biológicos" do casal. Juntos, Marcia e Leoni tiveram dois filhos: André e uma menina.
Por ter parentesco confirmado no exame, Marcia já tinha autorização para retirá-lo e prosseguir com o enterro. Não o fez até hoje: sem conseguir provar que o corpo é de André, não obteve a certidão de óbito e se nega a fazer o enterro sem o nome que escolheu para o filho.
Não quero saber quem fez isso com ele, não quero saber de nada. Só quero enterrar o meu filho com o nome que dei a ele
MARCIA BEATRIZ DOS SANTOS
Mãe de André
Para tentar um alvará judicial que autorizasse ligar o nome ao corpo, a faxineira foi orientada a procurar a Defensoria Pública. Muniu-se de documentos: certidões de nascimento dos filhos, boletim de ocorrência e exame de DNA. Em maio de 2018, o juiz deferiu o pedido só em parte: liberou o corpo para o enterro, mas não concedeu a certidão de óbito no nome de André.
– Mas ela não teve um suposto filho, ela teve um filho. Deu nome, amamentou, vestiu e educou fazendo o melhor que podia. Quem quer enterrar um filho assim? – protesta Margarete Grandi, advogada que acompanha o caso atualmente e para quem Marcia trabalha como faxineira há 13 anos.
Conforme Fabio de Andrade, professor de Direito Civil da PUCRS, a falta da certidão de óbito prejudica o pedido de benefícios e o encerramento de contratos. Dar baixa em vínculos do filho, como contas em bancos, também é uma das preocupações de Marcia. Andrade indica mecanismos jurídicos que podem ajudar, como o processo de morte presumida, solicitado quando situações indicam que uma pessoa estava em perigo de vida.
"Para a família, é um desastre"
Responsável pelo processo em primeira instância, o juiz Antonio Carlos Antunes do Nascimento e Silva, da Vara dos Registros Públicos, salienta que entende o peso do documento para a família, mas pondera que o laudo é inconclusivo:
– O DNA não identificou de forma conclusiva quem morreu. Há a possibilidade de que seja determinada pessoa. Mas se não for? O juiz fica preso a uma prova técnica.
Luciano Haas, diretor do DML, tem interpretação diferente. Ele diz que o magistrado "não está errado", mas que foi "extremamente rigoroso":
– Como vai se solucionar isso, se o perito não pode identificar e o juiz não dá a autorização para incluir o nome? Para a família, é um desastre.
Diretora do Departamento de Perícias Laboratoriais (DPL) do Instituto Geral de Perícias (IGP), Bianca de Almeida Carvalho explica que os exames de DNA trabalham com probabilidade.
– Eles mostram o vínculo familiar, mas não dizem quem é. Há uma limitação da técnica, mas isso não significa que não seja uma técnica boa – comenta.
Conforme Haas, após a comprovação de parentesco por DNA, há casos em que o delegado de polícia pode conceder um auto de identificação. Para gerar o documento, ele reúne testemunhas e indícios, como identificação de alguma cicatriz ou parte do corpo – por estar deteriorado, essa não é uma opção neste caso.
No documento do DML que encaminha o caso de Marcia à Defensoria Pública, o órgão pede uma "análise ampla dos fatos" para a inclusão do nome de André na certidão de óbito, "tarefa que exorbita das funções periciais".
Sem data para ser resolvida, a situação se alonga e testa as esperanças da família. No recurso em segunda instância ao Tribunal de Justiça, a advogada Margarete relaciona fatos ocorridos que teriam relação com o desaparecimento de André: um infarto de Marcia, crises de depressão no pai e de pânico em uma irmã do jovem.