O primeiro fim de semana de agosto trouxe uma nova paisagem a um dos principais cartões-postais de Porto Alegre: com a retirada das dezenas de tendas e cabanas de moradores de rua que se abrigavam sob o Viaduto Otávio Rocha, no centro da Capital, caminhões e bicicletas que vendem comidas e bebidas, os chamados food trucks, ocuparam o local. O evento, organizado pela prefeitura, ocorreu após uma ação da Brigada Militar (BM) na última terça-feira (1º), que recolheu os pertences dos sem-teto sem conhecimento da administração municipal.
O primeiro dia de food trucks embaixo do viaduto, no sábado (4), foi tímido: dos seis prometidos pela prefeitura, apenas um atendia ao público, que era bem escasso. A Fritos e Fritas, que chegou por volta das 9h no local, fez sua primeira venda somente às 11h30min, quando o diretor de Promoção Econômica da prefeitura, Luís Antônio Steglich, comprou um combinado com batata, polenta, calabresa, bacon, coxinha de asa e queijo muçarela.
Já o segundo dia, neste domingo (5), foi mais movimentado. Os seis food trucks prometidos pela prefeitura funcionavam lado a lado em um trecho de aproximadamente cem metros da avenida, ocupando uma faixa do sentido Centro-bairro. No cardápio, hambúrgueres, batatas, polentas, cervejas e sucos naturais - as comidas ficavam na faixa dos R$ 20; as bebidas, R$ 12. Havia seis mesas para que o público se acomodasse e cinco lixeiras dispostas. A energia elétrica era abastecida por dois barulhentos geradores, que disputavam a atenção dos visitantes com uma caixa de som tocando músicas pop-rock. Embora limpa, a calçada estava encardida e com água acumulada em alguns pontos.
Conforme o presidente da Associação Gaúcha de Gastronomia Itinerante (Agirs), Neno Guterres, que vendia hambúrgueres no Insano Old Truck no domingo, o evento foi organizado às pressas pela prefeitura, que após saber da ação da Brigada Militar, aproveitou para utilizar o espaço o mais rápido possível. Mesmo assim, a ideia agradou ao comerciante, que planeja continuar trabalhando com a administração para colocar novos comerciantes na região todos os finais de semana.
— Estamos no meio do centro gastronômico da cidade. Precisamos investir nesse lugar. Estou em contato direto com a prefeitura para fazermos um cronograma e ocupar os dois lados da avenida — conta Gutterres.
Quem também aprovou a ideia foi o casal Mara Santana, 52 anos, e Celso Cunha, 64 anos. A florista e o advogado, que haviam recém voltado do Litoral, estranharam a música alta e foram descobrir de onde ela vinha. Na avenida, provaram petiscos de todas as bancas até chegarem à Cervejaria Combustível. Cunha pegou um copo de cerveja Kolsch para experimentar. Cheirou com cuidado, olhou desconfiado para a esposa e bebeu um gole. Após alguns segundos degustando a bebida, aprovou a cerveja ao vendedor.
— Bah, muito boa. Me vê duas dessa, como é o nome? Isso, Kolsch — pediu Cunha.
— Imagina a Borges com as mesinhas, a música, a comida. A gente vem pra cá, senta, aproveita a sombra, toma uma cerveja, come um negocinho... vai ficar tri bom — disse Mara, com uma cerveja na mão e um hambúrguer na outra.
Já o agrônomo Marcelo Giacometti, 31 anos, e a advogada Mabel Tibes da Silva, 33 anos, observavam, curiosos, a movimentação de cima. Moradores de Criciúma, em Santa Catarina, não entenderam o desaparecimento dos moradores de rua.
— A gente sempre passa um fim de semana em Porto Alegre pra visitar os parentes. Estranhei. No ano passado, não estava assim. Me lembro das barracas. Vamos até ir dar uma olhada nas banquinhas — contou Giacometti.
Para onde foram os sem-teto
Enquanto uma viatura da Brigada Militar estava estacionada na esquina com a Rua Coronel Fernando Machado, algumas pessoas observavam as calçadas vazias na outra ponta do viaduto, na esquina com a Rua Jerônimo Coelho. Eram os antigos abrigados do local, que perderam quase todos os seus pertences. Sem um lugar fixo, eles agora estão espalhados pelo Centro: entre os destinos, estão a Praça da Matriz, o viaduto dos Açorianos e a Praça da Alfândega.
- A Brigada chegou pelas 14h, mandando todo mundo sair dos barracos. Não deram tempo pra gente levar nossas coisas. Pegaram até as muletas de um senhor que morava com a gente. Estamos só com a roupa do corpo — relata William Renan dos Santos, 27 anos, que morou embaixo do viaduto por seis anos.
Outros sem-teto conversavam sentados nas escadas do viaduto, discutindo quais serão os próximos abrigos. Ao lado de uma garrafa plástica e uma mochila nas costas com algumas mudas de roupa, Maurício Dias Maciel, 37 anos, reconhece que a avenida amedrontava quem transitava no local. Entretanto, ele critica a "brutalidade" da ação da Brigada Militar e do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU).
— Eu admito que uso crack e maconha, sim, porque eu me envolvi com pessoas de má índole anos atrás. Não dá pra mudar o passado. Mas eu sou ser humano, trabalho para poder comer e ter minhas coisas, e eles vem do nada e levam até o meu colchão. Não temos direito a aluguel social ou alguma ajuda assim? — questiona Maurício, que morava ali desde os 22.
Como serão os próximos fins de semana
O prefeito Nelson Marchezan diz que a revitalização do viaduto já estava nos planos da administração, junto aos projetos de reestruturação do Cais do Porto e da Orla do Guaíba. Embora afirme que não foi informado sobre as ações de policiamento, aprovou as medidas tomadas:
— As ações têm todo o nosso apoio. O DMLU não sabia exatamente o que era, mas cumpriu seu papel. A Brigada é nossa parceira. Não vamos ficar procurando pequenos erros, se é que existem. Vamos manter as nossas forças. Nosso programa de atendimento a moradores de rua conseguiu verba federal agora, e devemos oferecer um roll de alternativas. São várias engrenagens que estão se montando.
A ideia é que o espaço seja ocupado por food trucks todos os dias, durante o maior período de tempo possível. Agora, serão feitas discussões com os comerciantes e vistorias no local para avaliar as condições de pintura, iluminação e limpeza urbana.
— Queremos revitalizar o viaduto e também os banheiros e depósitos, que estão em estado deplorável. A ideia a alcançar é ter sete dias por semana, com produtos diferentes, outras opções musicais, teatrais. Ir testando com os comércios e ver se conseguimos aproveitar o fundo que temos reservado para a cultura, que está parado há um tempo — diz Marchezan.