Não é apenas pela má qualidade do equipamento que os trens da Trensurb são investigados. A suspeita de que a licitação para compra dos veículos envolveu um cartel já foi diagnosticada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), do Ministério da Justiça, e virou investigação do Ministério Público Federal (MPF).
Em 2012, os 15 novos trens da Trensurb foram adquiridos ao custo de R$ 244 milhões, por meio de uma licitação realizada no mesmo ano. O certame foi vencido pelo consórcio formado por Alstom e CAF — as mesmas empresas que, naquele ano, também ganharam a concorrência para fornecer trens em Belo Horizonte — 10 veículos para a Companhia Brasileira de Trens Urbanos, avaliados em R$ 171,96 milhões.
Alstom e CAF fazem parte de um grupo de 18 concorrentes em licitações de trem e metrô ocorridas entre 1998 e 2012, investigados por suposto acerto de preços nas capitais gaúcha e mineira, além de São Paulo, Distrito Federal e Rio de Janeiro. Esses contratos totalizam R$ 9,4 bilhões. Em São Paulo, já tramita ação judicial criminal contra os supostos envolvidos, mas no RS ainda está em fase de investigação.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) teve acesso às 288 páginas de conclusões da investigação do Cade. O órgão constatou a formação de cartel a partir de delações premiadas feitas por empresas — os acordos de leniência. O principal deles foi firmado entre uma vencedora de contratos (a empresa alemã Siemens) e o Cade. O outro pela empreiteira Camargo Corrêa.
Após revelações dos delatores, indícios foram colhidos durante operação judicial de busca e apreensão de documentos, feita a pedido do Cade em julho de 2014. O suposto cartel teria atuado em 15 projetos licitados pelo poder público, via instituições como o Metrô de São Paulo, Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), Metrô do Distrito Federal, Empresa de Trens Urbanos (Trensurb), núcleo da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) em Minas Gerais e Secretaria de Estado de Transportes do Rio de Janeiro.
Na investigação a que o GDI teve acesso, o Cade aponta "fortes indícios de acerto de preço para eliminar a competição na compra dos veículos pelo governo federal em Porto Alegre e Belo Horizonte". As duas licitações só tiveram propostas da francesa Alstom e da espanhola CAF, que revezaram o controle dos consórcios, batizados de FrotaPOA e FrotaBH. Na Trensurb, a Alstom ficou com 87,3% do consórcio e a CAF 12,7%. A proporção foi exatamente invertida na CBTU mineira, o que é considerado pela investigação um dos indícios de cartel. A delação da Siemens é sobre trens em geral. A da Camargo Corrêa abrange metrôs subterrâneos — no caso de Porto Alegre, a formação de cartel não se concretizou já que o metrô nunca saiu do papel.
E-mails sugerem combinação de resultados
A suspeita do Cade está alicerçada, além da delação, em e-mails trocados entre o alto escalão das duas empresas, interceptados nos computadores dos executivos. Em 6 de novembro de 2012, uma semana antes do desfecho das licitações, Agenor Marinho, membro da diretoria da CAF, comunica Luiz Fernando Ferrari, da Alstom, sobre a divisão do consórcio. Intitulada "Divisão do escopo", a mensagem é clara:
"Conforme nossas últimas conversas, informamos que o menor preço, para o fornecimento dos truques (base que sustenta o trem) para a Trensurb, conforme escopo em anexo, é de R$ 33.000.000,00 (trinta e três milhões de reais). Acreditamos que assim tenhamos chegado ao valor possível para ambas as empresas o que nos permitirá assinar o acordo." Em seguida, ele manda uma tabela com valores.
Segundo o Cade, a parceria não resultava de imperativos técnicos, mas uma divisão de mercado para eliminar a competição. Exemplo seria a transcrição de uma sequência de e-mails de novembro de 2012. A conversa, em inglês, mostra que executivos da Alstom cogitam disputar as licitações sozinhos. Mas aí um dos gestores, Marco Contin, alerta que uma disputa com a CAF seria prejudicial e sugere uma aliança.
"No momento, a informação que temos é de que nós não temos um competidor (apenas a CAF). No caso de decidirmos ir sozinhos, estou certo de que a CAF irá apresentar uma proposta e entraremos em uma guerra de preços que não é boa nem para nós, nem para eles."
A prática de cartel pode resultar em multa às empresas de até 20% de seus faturamentos _ apesar de tramitar há quatro anos, o caso ainda não está concluído. A investigação do Cade serviu para embasar um inquérito na Polícia Federal, que indiciou criminalmente Agenor Marinho (dirigente da CAF) e Luis Fernando Ferrari (Alstom), além de outro dirigente da Alstom, Wagner Ribeiro. Eles teriam infringido o Artigo 90 da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações). Caso condenados, estão sujeitos a detenção de dois a quatro anos e multa, por "frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação". Essa investigação criminal está sendo ampliada pelo Núcleo de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal (MPF). O objetivo também é verificar se e como se deu o cartel da compra de trens em Porto Alegre.
Licitações sob suspeita
Belo Horizonte - CBTU
- 10 trens
- R$ 171,96 milhões
- Consórcio FrotaBH
- CAF (93,14%) e Alstom (6,86%)
Porto Alegre - Trensurb
- 15 trens
- R$ 244,67 milhões
- Consórcio FrotaPOA
- Alstom (87,3%) e CAF (12,7%)
Contrapontos
O que diz a Alstom:
Sobre o Cade, a assessoria de imprensa diz que a Alstom não pode se pronunciar sobre um inquérito que ainda está em curso. A empresa reafirma que vem colaborando com as autoridades sempre que solicitada e que opera de acordo com um rigoroso código de ética e com todas as leis e regulamentos dos países onde atua. A prática de cartel ou de qualquer concorrência desleal não é permitida pelas regras da empresa.
Sobre defeitos nos trens do Consórcio Frota Poa, a Alstom diz que está engajada em restabelecer o funcionamento dos trens que se encontram em recall, em pleno cumprimento do cronograma apresentado à Trensurb e das especificações técnicas previstas em contrato. Desde a aprovação do plano de trabalho, que prevê mobilização in loco de equipes dedicadas e apoio remoto de técnicos e engenheiros baseados em São Paulo e na Europa, já foram liberados sete trens requalificados, todos à disposição da Trensurb e da população (segundo a Trensurb, apenas quatro trens estão em uso)
O que diz a CAF:
"A CAF respeita o trabalho do CADE, nega taxativamente as acusações a ela imputadas e a seus executivos, reafirma que têm colaborado com as autoridades no fornecimento de todas as informações solicitadas e na defesa categórica de sua inocência, e que atua, e sempre atuou, estritamente dentro da legislação brasileira."