Em uma das esquinas mais movimentadas da boêmia Cidade Baixa, um pequeno estabelecimento parece ter congelado no tempo. Prestes a completar 40 anos, a sorveteria Joia é um símbolo de resistência: indiferente às mudanças no perfil do bairro porto-alegrense e à gourmetização de seu principal produto, sobrevive quase nos mesmos moldes da época em que foi inaugurada, em 1978.
Sem afetação, mas com estilo, o ponto à esquina da Rua da República com a Rua José do Patrocínio, no térreo de um charmoso prédio em estilo art dèco, agrada aos mais diversos públicos: desde as famílias que lotam o lugar aos finais de semana até a jovem boemia que frequenta o bairro quase todo dia. A popularidade não é à toa. O letreiro simpático com cara de anos 1980 convoca a memória afetiva de marmanjos, e o carro-chefe da casa é o xodó de qualquer criança: sorvetes coloridos, servidos de forma generosa em um potinho, cascão ou cesto de biscoito.
O rosto por trás do sorvete mais famoso do bairro é seu João Klein, 70 anos. Natural de Torres, no Litoral Norte, ele trabalhou como pedreiro e coveiro depois de mudar para a Capital, quase cinco décadas atrás. Foi quando atuava como zelador em um prédio da Avenida Getúlio Vargas, no final da década de 1970, que surgiu a oportunidade de abrir o próprio negócio.
— Eu tinha a ideia de ser comerciante. O ramo, não tinha identificado ainda. Aí, o dono do minimercado que tinha na frente do prédio convidou para trabalhar com ele na sorveteria que ele ia abrir, mas como funcionário. Eu não quis. Disse: se sair daqui, vai ser para uma coisa melhor — recorda.
Meses após seu João recusar o convite para mudar de emprego, o homem propôs a sociedade em uma filial da Joia – a matriz, na José de Alencar, chegou a ter cinco filiais (todas fecharam, restando apenas a loja de seu João; mais tarde, seu irmão abriu uma Joia na Venâncio Aires). Foi um desafio duplo: administrar o ponto e aprender a produzir sorvete. O que hoje considera “mais fácil do que cozinhar” exigiu dedicação e paciência. Até acertar a mão, foram meses de clientes nem sempre satisfeitos..
— Tive só algumas aulas com o genro do meu sócio. Os primeiros sorvetes foram horríveis. Quem me ajudou foram os clientes, que iam dizendo, "está muito doce, muito granulado", para eu ir corrigindo — lembra.
Desde que encontrou o ponto ideal para suas receitas, décadas atrás, quase nada foi alterado. Aos sabores clássicos somaram-se outros, mais incrementados, como o creme russo, com frutas cristalizadas — seu preferido — e os sabores à base de frutas, como maracujá e abacaxi, que caíram no gosto dos fregueses.
O ambiente sofreu poucas alterações: foram instaladas sete banquetas altas nos cantos, e meia dúzia de cadeiras na área central da sorveteria — boa parte dos clientes, no entanto, prefere degustar o sorvete em pé ou sentado à mureta em frente ao local. A máquina que usava no preparo dos primeiros sorvetes foi substituída por uma mais rápida e virou peça de museu, exposta no meio da Joia. Seu João ganhou espaço: uma sala nos fundos da sorveteria, atrás do balcão, onde ficam armazenados os freezers e a nova máquina, capaz de produzir, segundo ele, 10 litros a cada seis minutos.
Simplicidade é marca registrada da sorveteria que virou ponto de encontro da Capital, atraindo turistas estrangeiros — atendidos com mímica, segundo o dono — e nacionais. Dos famosos que já passaram por lá, quem marcou a memória de seu João foi uma celebridade local: o jornalista Paulo Sant'Ana, um fanático por doces, costumava prestigiar os sorvetes da casa.
Se a Joia pouco mudou em quatro décadas, o mesmo não se pode dizer de sua vizinhança. Os escassos comércios ao redor se multiplicaram, e a vida noturna se intensificou. Apesar de ter se beneficiado do movimento, seu João lembra com mais carinho da época em que o ápice do agito no entorno eram os carnavais de rua promovidos pela Banda DK, no auge do verão porto-alegrense.
— Está meio agitado hoje. Quase passando o limite, né? Mas, para o comércio, é bom — avalia, resignado.
O surgimento de cafés e sorveterias que vendem opções mais elaboradas de sorvetes também não parece abalar a confiança do comerciante, que hoje atua apenas na produção, das 7h ao meio-dia — do meio-dia à meia noite, horário em que a Joia funciona, quem comanda os trabalhos é o filho Luís Fernando. Ele acredita que o diferencial de seu negócio é oferecer um bom produto a preço acessível — há opções a partir de R$ 4 — e contar com a fidelidade da clientela.
— O meu tipo é de povão. O preço, quantidade. As pessoas gostam, voltam, tem clientes que vêm desde que abriu. E sorvete é um dos alimentos que nunca enjoa. É que nem arroz e feijão — defende.
"É uma sorveteria old school", diz cliente
Se não dá para dizer que Eduardo Maso Viegas, 39 anos, come sorvete da Joia desde nasceu, não seria errado falar que é cliente da casa desde que se conhece por gente. Morador do prédio onde está instalada a sorveteria, ele frequenta o local desde a infância por conta dos avós, antigos moradores do apartamento onde vive há cerca de seis meses.
— A gente vinha visitar o vô e comia sorvete na Joia. Eu gostava bastante do de pistache. Até hoje, é um dos que eu mais gosto — recorda o técnico em hidrologia.
A percepção do antigo cliente confirma a impressão que se tem ao entrar na tradicional sorveteria: pouco mudou no lugar aonde forjou parte de suas memórias de infância.
— Acho um clima bem retrô, porque ele não muda muito as coisas. O sorvete não é tão elaborado, mas é bem igual ao que era: saboroso, como sempre foi — avalia.
O atendimento ágil e o bom preço, para ele, são outros atrativos que mantêm a clientela fiel à Joia. E a fidelidade do dono à proposta inicial é motivo de admiração na vizinhança.
— Acho que agrega valor ao bairro, pelo histórico, por tudo que aconteceu aqui. Enquanto vários migraram, ele não apelou para vender cerveja. Segue na sua linha, investindo no mesmo ramo. É uma sorveteria old school — acrescenta.