Zé Celso e o elenco do espetáculo Roda Viva, escrito por Chico Buarque e dirigido por Zé, estiveram em Porto Alegre em outubro de 1968, para apresentar a montagem icônica, que virou um manifesto de contestação à Ditadura Militar, que dominava o Brasil desde 1964. Após sofrerem represálias no Rio de Janeiro e São Paulo, na capital gaúcha, a tensão aumentou e o escritor, diretor e ator viveu momentos emblemáticos em solo gaúcho. Devido à morte do realizador, nesta quinta-feira (6), republicamos aqui este material produzido pelo jornalista Marcelo Perrone, em 2016, que recapitula, também, reportagens dos jornalistas Renato Mendonça e Karine Ruy, publicadas em Zero Hora e Diário Catarinense, ambas em 2008, a respeito dessa passagem do Oficina por Porto Alegre.
O acirramento de ânimos lançado pela polarização política que tensiona o Brasil desdobrou-se em um episódio polêmico, sábado passado, em um teatro de Belo Horizonte. Ao ter seu espetáculo Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos interrompido por parte da plateia, indignada com um comentário crítico que fez à presidente Dilma Rousseff e ao ex-presidente Lula, o ator e diretor mineiro Claudio Botelho comparou, aos gritos:
— Vocês são piores que os militares, vocês estão parando Roda Viva. Estão parando Chico Buarque.
O nome de Chico é comum aos dois espetáculos, mas as circunstâncias históricas de cada interrupção são muito distintas. Botelho exagerou e reconheceu isso em seu posterior pedido de desculpas. Não cabe fazer um paralelo entre um barraco público resolvido no grito entre seus antagonistas, sem nenhuma agressão física registrada, com o ato de violência que se passou no Brasil de 1968 sob a vista grossa do Estado instituído pelo golpe militar de 1964. A altercação entre Botelho e o público refratário à sua piada combinou a falta de tato do diretor à intolerância dos apoiadores. E justo no palco de um teatro, espaço ancestral de críticas e provocações. E se a gracinha tivesse sido com o juiz Sergio Moro? Os que reprovaram Botelho teriam achado graça? Os que riram ou silenciaram seriam os indignados? Discutir essa questão ficou em segundo plano em meio ao atropelo do bom senso e da civilidade.
Já os episódios que envolveram a encenação do espetáculo Roda Viva simbolizam mais do que um racha entre posições opostas no jogo político de uma democracia, mesmo sob regras que permitam baixarias de parte a parte e surdez e cegueira diante do contraditório. Escrita por Chico Buarque e com direção de José Celso Martinez Corrêa, Roda Viva estreou em 15 de janeiro de 1968 no Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro.
Em cena, a história de um cantor diante das aflições decorrentes da busca pelo sucesso. Zé Celso, um dos expoentes do teatro de vanguarda no Brasil, fez de Roda Viva, embalada pela canção homônima de Chico, um manifesto de contestação. A performance combinava imagens sacras e cenas de sexo. A interação do elenco com o público provocava momentos de tensão, como na cena em que um fígado cru dilacerado no palco fazia respingar sangue na plateia, e a simulação de uma repressão a estudantes pela polícia embaralhava atores e espectadores.
No dia 18 de julho daquele ano, durante a temporada paulistana de Roda Viva, cerca de 20 integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), grupo paramilitar ligado ao governo, invadiram o Teatro Galpão destruindo cenários e espancando os atores, entre eles Marília Pêra, que havia substituído Marieta Severo.
Em Porto Alegre, a situação foi ainda mais violenta em 3 de outubro. Assim que foi encerrada a sessão no Teatro Leopoldina – as três noites previstas estavam com ingressos esgotados –, a atriz Elizabeth Gasper, que entrara no lugar Marília, e o músico Zelão foram sequestrados e levados até o Parque Saint-Hilaire, em Viamão. Elizabeth lembrou o trauma a ZH, em reportagem em reportagem de Renato Mendonça publicada em 2008 no caderno Cultura:
— Na entrada do teatro houve um bafafá, distribuição de panfletos contra a peça. Depois da janta, uma parte do elenco foi para o hotel (o Rishon, na Rua Dr. Flores) e outros continuaram na churrascaria. Dali a pouco, chegaram pessoas machucadas, dizendo que haviam sido agredidas pelo pessoal do CCC. O pianista Romário foi o que apanhou mais. Teve os dentes quebrados. Alguém tinha parentes em Porto Alegre. Decidimos que não voltaríamos para o hotel. Eram umas 10 pessoas escondidas nessa casa. De repente, ouvimos ruídos de camionetas acelerando e parando.
Em meio à fuga dos companheiros, Elizabeth e Zelão foram capturados.
— Começamos a nos afastar da cidade. Paravam na estrada, abriam o porta-malas, tiravam soco-inglês, ficavam rindo e dizendo: "Aqui ainda é perto. Vão ouvir os gritos". Pelo corte de cabelo e pela postura, pareciam soldados, uns 15 homens.
Após uma sessão de humilhação e intimidação, os dois foram libertados, com ordem de deixar Porto Alegre até o próximo meio-dia. Nesse dia seguinte, a fachada do Teatro Leopoldina amanheceu pichada com "Fora comunistas", "Chega de pornografia", "Abaixo a imoralidade". Mas apareceu também um provocador "Abaixo a ditadura".
Também em 2008, em reportagem do Diário Catarinense assinada por Karine Ruy, o músico e dramaturgo Romário José Borelli, a quem Elizabeth fez referência, lembrou a agressão. Naquela noite, ele estava acompanhado pelo ator Amilton Monteiro e o iluminador Marcelo Bueno. Ao retornarem para o hotel, foram recebidos a pauladas, socos e pontapés por membros do CCC. Os chutes que levou no estômago causaram hemorragia, e Borelli teve de voltar de avião para São Paulo, enquanto o resto do elenco de Roda Viva viajou de ônibus escoltado pela polícia.
— Eu tive que fugir logo em seguida porque a Polícia Federal estava tentando me prender por causa das declarações que eu tinha dado quando cheguei no aeroporto em São Paulo. Nesse mesmo dia, nem pude dormir em casa porque a polícia já tinha percorrido o Teatro de Arena atrás de mim – lembrou Borelli, catarinense de Porto União.
— Eu tinha uma consciência política da luta contra a ditadura. O Teatro de Arena era propagador das ideias de liberdade. O que aconteceu em Porto Alegre foi o desfecho de uma sequência de fatos daquele ano. Frequentemente, a polícia desligava a luz dos teatros pra gente não poder apresentar. A gente vivia permanentemente sob ameaça, em um clima de terror permanente.
A capa de Zero Hora de 5 de outubro anunciou em manchete: "E parou a Roda Viva". Parou mesmo. Porto Alegre assistiu à ultima sessão do espetáculo imediatamente censurado. Em 13 de dezembro daquele ano, viria o AI-5, o ato institucional que lançou o Brasil na fase mais sombria e violenta da repressão.