Em outubro de 2010, o consórcio escolhido para executar a revitalização do Cais Mauá apresentou à sociedade um projeto que, além de prever a exploração comercial da área, oferecia dois vistosos presentes à população de Porto Alegre. Um deles era o rebaixamento de um trecho da Avenida Presidente João Goulart, junto à Usina do Gasômetro, de forma que a Praça Brigadeiro Sampaio fosse prolongada, passando por cima da via e unindo-se à zona da orla. Era uma forma de interligar o projeto ao Centro.
O outro regalo consistia em transformar o polêmico e rejeitado muro da Mauá em um ícone da cidade: ao longo de sua extensão, a estrutura de concreto seria transformada em uma cortina de água com fluxo constante. As duas novidades foram propagandeadas em maquetes eletrônicas que ajudaram a convencer a cidade a abraçar o empreendimento.
Rebaixamento de trecho de avenida para prolongamento de praça foi eliminado do projeto inicial
Foto: Reprodução Consórcio Porto Cais Mauá/Divulgação
Com o passar dos anos, os planos para a exploração comercial do cais permaneceram intactos, mas os dois presentes foram confiscados. O rebaixamento sumiu do projeto. A cortina de água foi reduzida dramaticamente. Sabe-se agora que a prefeitura de Porto Alegre desempenhou um papel central nisso, isentando os empreendedores de gastar com as obras.
A informação está explícita em um documento entregue no mês passado pela Cais Mauá do Brasil, consórcio que obteve a concessão da área. A papelada contém as respostas da empresa a questionamentos feitos em audiência pública realizada em setembro, a dúvidas levantadas pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam) e a críticas apresentadas por cidadãos da Capital. Em quase 200 páginas, emergem vários detalhes sobre como será o empreendimento. Um deles diz respeito à eliminação do rebaixamento da avenida e ao prolongamento da praça, substituídos por uma passarela para pedestres. Questionado sobre o tema, o consórcio afirma que a alteração foi uma decisão da prefeitura de Porto Alegre.
Em entrevista a ZH, Glênio Bohrer, secretário-adjunto do Gabinete de Desenvolvimento e Assuntos Especiais da prefeitura, confirmou que a eliminação do rebaixamento partiu do município. Entre as razões que ele apresenta estariam risco de alagamento, dificuldade da obra e problemas de segurança decorrentes da existência de um túnel na área central.
- De certa forma, foi decisão da prefeitura. Os desenhos gerais apresentavam a ideia da passagem da praça sobre a avenida, mas quando a prefeitura recebe os projetos, ela faz uma análise, e a proposta pode ganhar outros contornos. Era uma obra de calibre grandioso, que representaria um rebaixo de quase sete metros. Os custos eram extraordinários. Seriam quase 300 metros de túnel rebaixado. Do ponto de vista do tamanho da operação, concluiu-se que não havia necessidade.
Com a substituição do túnel por uma passarela de pedestres por cima da avenida, será preciso eliminar árvores da praça - no total, o empreendimento prevê o corte de 330. A passarela, segundo críticas apresentadas no processo de discussão do licenciamento ambiental, também prejudicaria a paisagem e a vista do Guaíba. Para o consórcio, o impacto será pequeno.
No que diz respeito a transformação do muro da Mauá em uma cortina de água corrente, embelezando um dos elementos menos apreciados da cidade, os documentos apresentados pelos empreendedores indicam que a intervenção foi restringida a um pequeno segmento. Segundo Bohrer, a redução foi proposta pelo consórcio e acatada pela prefeitura. Ele afirma que a cascata foi reduzida a extensão de 50 metros.
- A cortina era uma proposição, não era uma condição do projeto. O DEP examinou longamente se seria possível ou não. Verificou-se que, ao longo de todo o muro, seria uma operação complexa e dispendiosa. O consórcio propôs 50 metros e a prefeitura disse que não teria problemas.
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Bohrer confirmou que os custos dos dois elementos revistos seriam bancados pelo empreendedor - e não pelos cofres públicos. Na segunda-feira, ZH encaminhou uma série de questionamentos sobre os temas abordados nesta reportagem à Cais do Mauá do Brasil. No final da tarde desta terça-feira, o consórcio informou que não teria como responder a tempo.
No fim de 2015, o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto do Meio Ambiente (EIA-Rima) apresentado pela Cais Mauá do Brasil foi aceito pela prefeitura. Na ocasião, a empresa entregou ao município o Estudo de Viabilidade Urbanística do projeto, que deve ser avaliado em um prazo de 90 dias e é um requisito para a autorização do início das obras.
O QUE DIZ O DOCUMENTO SOBRE...
SHOPPING CENTER
Considerado um atentado ao espaço público pelos adversários do projeto e um elemento indispensável para viabilizar o empreendimento pelo consórcio, o shopping center previsto para o setor do Gasômetro terá uma área total construída de 99 mil metros quadrados.
A documentação da Cais Mauá do Brasil revela que a empresa fez um ajuste no projeto, eliminando o estacionamento previsto para o subsolo. As vagas ficarão no térreo e no segundo pavimento: "o térreo terá lojas somente ao longo das fachadas externas, voltadas para a Avenida João Goulart e para o Guaíba". O terceiro e último pavimento terá lojas com mezanino.
O shopping vai se elevar a 14 metros, o que, segundo a empresa, caracterizará uma "edificação horizontal, de baixa altura, que não concorre volumetricamente com a Usina do Gasômetro". Entre ele e a usina existirá uma faixa de circulação de pedestres de no mínimo 50 metros, "que poderá ser caracterizada como uma via, já que possui a extensão do alinhamento da Rua da Praia".
Uma possibilidade em estudo é que, neste trecho, uma parede do shopping substitua o muro da Mauá como cortina de proteção contra enchentes.
VAGAS DE ESTACIONAMENTO
Uma das preocupações dos participantes da audiência pública foi a exploração de estacionamento dentro do complexo. Segundo o consórcio, serão no total mais de 4 mil vagas para carros.
No setor de armazéns, na primeira fase, serão 729 lugares distribuídos ao longo da face interna do muro da Mauá e em um bolsão próximo ao Gasômetro.
Na segunda fase do empreendimento, no setor das docas, haverá 1.954 vagas. O texto produzido pela Cais Mauá do Brasil dá a entender que haverá um prédio para isso: "Estão previstas em uma edificação própria para esse fim, que ficaria no local do prédio do Cicoa/Cibrazem, que está em péssimas condições e tem já sua demolição autorizada".
O setor Gasômetro, por fim, comportará mais 2.386 vagas, no térreo e no segundo pavimento do shopping a ser construído.
AVENIDA MAUÁ
Críticos apontam que, com o empreendimento, a Avenida Mauá ficará mais congestionada. Também questionam se o estacionamento ao longo da via será proibido, obrigando as pessoas "a pagar o estacionamento interno do empreendimento".
A empresa confirma que não será mais possível estacionar na Mauá no lado em que fica o muro, "para que a primeira faixa de trânsito, área a ser agregada à calçada, seja destinada às paradas de ônibus, embarque e desembarque de vans, ponto de táxi e ciclovia". O consórcio afirma ainda que a alteração proporcionará "faixas de desaceleração e aceleração para acesso de veículos sem atrapalhar o fluxo da Mauá" e argumenta que a proibição de estacionamento na rua "democratiza o uso do espaço público", oferecendo melhores condições para outras possibilidades de locomoção.
ACESSOS AO CAIS
Para dar acesso ao empreendimento, haverá mais aberturas no muro da Mauá, e aberturas já existentes serão ampliadas.
A empresa afirma que o portão localizado no eixo da Avenida Sepúlveda será aumentado dos atuais sete metros para 20 metros de largura, "de forma que a conexão da entrada principal do empreendimento com a praça da Alfândega seja ampliada, evidenciada e valorizada". Esse acesso será exclusivo para pedestres.
Também será ampliada uma abertura existente no eixo da Avenida Padre Thomé, para uso de veículos. As novas aberturas serão cinco, segundo o consórcio
- No alinhamento da Rua General João Manoel (pedestres)
- Na travessa Araújo Ribeiro (pedestres)
- Duas no setor do Gasômetros (para veículos, podendo ser usadas por pedestres)
- Junto à Rua Caldas Júnior (para veículos, podendo ser usadas por pedestres)
A passagem subterrânea que leva ao catamarã, diz a empresa, será reformulada.
INUNDAÇÕES
Em outubro, uma cheia elevou o Guaíba ao maior nível registrado desde a enchente de 1941. Por pouco, não houve transbordamento na área do cais. O episódio levantou dúvidas em relação ao empreendimento de revitalização e ao sistema de proteção contra as cheias, do qual o muro da Mauá faz parte. A Assembleia Legislativa, por exemplo, aprovou requerimento do deputado Tarcísio Zimmermann (PT) e agendou uma audiência pública para março. O parlamentar diz que a enchente representa um fato novíssimo, que implica em necessidade de rediscutir elementos do projeto.
Na audiência pública, o tema das cheias também apareceu com força. Um dos questionamentos diz respeito às várias aberturas que serão feitas ou ampliadas no muro e ao risco que elas representam para a cidade em caso de cheia.
De acordo com a Cais Mauá do Brasil, "efetivamente os estudos apontam para um aumento no risco de falha do sistema no trecho de interesse quando considerado exclusivamente o aumento do número de aberturas/comportas". No entanto, o consórcio sustenta que outros elementos precisam ser avaliados. A empresa assumirá a responsabilidade de recuperar a estrutura do muro (atualmente com fissuras, corrosão e rachaduras), restabelecer o pleno funcionamento das comportas e treinar as equipes que operarão o sistema. Além disso, as aberturas no muro funcionarão como comportas. "O risco de abertura de novas comportas é inferior ao causado pela deficiência de manutenção no sistema", argumenta o empreendedor, segundo qual "o sistema de proteção contra cheias será mais seguro do que é atualmente".
Glênio Bohrer, secretário-adjunto do Gabinete de Desenvolvimento e Assuntos Especiais da prefeitura, afirma que não há perspectiva de mudança no projeto em consequência da cheia de 2015.
- O que ocorreu foi bastante pontual, e o empreendimento que vai para lá sabe que a água eventualmente pode passar do assoalho do cais e vai ter de assumir esse risco.
CICLOVIAS
Como contrapartida pelo empreendimento, o consórcio terá de construir 8,7 quilômetros de ciclovias e implantar bicicletários com pelo menos 350 vagas. A documentação da empresa afirma que "o primeiro trecho deverá ser implantado ao longo do muro da Mauá, pelo lado externo do empreendimento".
Essa ciclovia terá 2,5 metros de largura, com pistas para os dois sentidos de circulação. Ela seguirá da Caldas Júnior até o Gasômetro, onde será conectada à ciclovia da orla. O trecho será de 1,2 quilômetro.
Para a construção da ciclovia, a calçada da Avenida Mauá será ampliada. Os demais trechos que terão de ser construídos serão definidos pela EPTC.
NOVOS EDIFÍCIOS
A construção de torres à beira do Guaíba é um dos tópicos que gera mais polêmica no empreendimento. Além do shopping center no Gasômetro, a empresa afirma que estão previstos três edifícios comerciais no setor das docas, um deles para funcionar como hotel.
No antigo prédio do Deprec há previsão de instalação de um hotel butique.
CONSTRUÇÃO DE TÚNEL
O consórcio fará um túnel que prolongará a Ramiro Barcelos até a área do empreendimento, passando por baixo da Avenida da Democracia e da Legalidade. O túnel contará com comportas, para integrar-se ao sistema de proteção contra cheias.
CONEXÃO COM A ORLA
De acordo com os empreendedores, ao longo de todo o Guaíba - das docas aos Gasômetros - existirá uma área contínua de circulação, de 15 a 17 metros de largura (distância entre a borda do cais e os armazéns). Na usina, essa área de circulação permitirá acesso à zona de orla atualmente em processo de reurbanização pela prefeitura.
GUINDASTES
Em fevereiro do ano passado, a Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) informou que sete dos 11 guindastes que existiam no cais foram removidos e vendidos como sucata. O tema gerou polêmica e reapareceu na audiência pública.
Em sua resposta às críticas, o consórcio afirmou que, ao tomar posse da área, assumiu responsabilidade apenas pelos quatro guindastes, que "serão restaurados e receberão iluminação especial". A empresa afirma que a remoção dos outros sete não foi de sua responsabilidade e está sendo investigada pelo Ministério Público Estadual. Segundo o MP, uma audiência sobre o tema está marcada para março. O órgão observa que não há clareza sobre o tombamento histórico ou não dos guindastes e diz trabalhar com a possibilidade de determinar algum tipo de compensação.
Vanderlan Frank Carvalho, diretor-geral da Secretaria Estadual de Transportes e coordenador do grupo de trabalho do Cais Mauá, reconhece que a remoção foi feita pela SPH, mas afirma que os guindastes estavam deteriorados e não apresentavam possibilidade de restauro.
ESPAÇOS CULTURAIS
Um dos questionamentos direcionados ao consórcio foi se haverá áreas destinadas a atividades artísticas e culturais. Também foi perguntado se o empreendimento não poderia funcionar apenas com atividades culturais e comércio de pequeno porte.
Em resposta, a Cais Mauá do Brasil se comprometeu a destinar o Pórtico Central e os armazéns A e B, segundo ela "os imóveis de maior relevância" em termos de patrimônio histórico, especificamente a atividades culturais - incluindo exposições e apresentações. A empresa também anuncia que a zona do armazém A7, que será demolido, receberá eventos ao ar livre. São citadas feiras, exposições e atividades esportivas.
De acordo com o consórcio, o projeto precisa ser sustentável do ponto de vista econômico, porque os investidores privados aplicam capital com objetivo de obter retorno financeiro. "Caso o complexo proporcionasse apenas atividades culturais, artísticas, artesanais ou de comércio de pequeno porte, não seria possível manter o uso da área", defende.