Porto Alegre

Entrevista

Natasha Neri: "Essa aberração não é uma exceção, é um padrão da polícia"

Pesquisadora e codiretora do filme Letal fala sobre casos de pessoas mortas em supostos confrontos com a PM do Rio

Fernando Frazão / Agência Brasil

Mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ, ex-pesquisadora do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), da UFRJ, entre 2007 e 2012, a pesquisadora Natasha Neri vem desde outubro se dedicando à produção do documentário Letal, que dirige em colaboração com Lula Carvalho. O filme acompanha as diferentes fases de tramitação de diversos casos em que pessoas foram mortas em supostos confrontos com a polícia do Rio, os chamados "autos de resistência". O quadro que ela apresenta é o de uma polícia corporativa que não investiga, não acompanha os inquéritos e os arquiva com perícia deficiente.

Cinco jovens foram metralhados dentro de um carro no Rio esta semana. O que justifica essa linha de ação da polícia carioca, com tantas mortes, mesmo em situações em que não parece haver perigo nenhum para os policiais envolvidos?

Esse caso é uma exacerbação de práticas rotineiras da polícia, que sempre atira antes. Esse caso só se tornou possível porque muitos outros casos semelhantes não passaram da fase de inquérito e foram arquivados. Só foi possível esse absurdo porque no ano passado foram 582 casos, e neste já passam de 500. O procedimento é sempre o mesmo: a polícia apresenta o corpo na delegacia, apresenta uma suposta arma de um suposto suspeito, alega ter sido um tiroteio e o caso é arquivado com carimbo do MP e anuência do juiz. O caminho da maioria desses casos é um inquérito que vai e vem entre o Ministério Público e a delegacia, até que lá pelas tantas o delegado diz que a versão policial não foi contestada e o MP arquiva.

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E o que houve de diferente neste caso?

Os policiais perderam a mão. Pelas informações obtidas até agora, eles estavam aguardando a passagem de um carro e de uma moto que teriam participado do roubo a um caminhão da Ambev. E o resultado mostra que eles pretendiam matar os "bandidos", o que não é correto já na origem. Esse caso só teve a repercussão que teve porque os rapazes eram inocentes. O que houve de diferente nesse caso? Foram disparados muitos tiros, bem mais do que o normal, foram cinco vítimas de uma vez e a população foi ao local e fez o que o Estado deveria fazer: guarneceu a cena do crime. Apesar de o caveirão ter ficado o tempo todo ali do lado e de alguns familiares terem sido ameaçados. Há indícios também de que os policiais teriam tentado plantar uma arma no carro. Outra coisa é que essas vítimas são consideradas dentro dessa categoria do "morador", que mora na comunidade mas não está envolvido com o crime. Tudo isso é uma exceção que só foi possível porque existe a regra: em áreas de favela em que há muitas ocorrências de roubo, a polícia chega matando. Atira, apresenta o corpo, registra como legítima defesa. Essa aberração não é uma exceção, é um padrão da polícia, apresentar o auto de resistência na delegacia e esperar que não dê em nada.
 
E como a senhora analisa a experiência da UPPs, que deveriam marcar a presença do Estado de modo mais efetivo em determinadas comunidades?

É verdade que durante um primeiro momento as UPPs conseguiram diminuir os confrontos. Mas a UPP é só uma base militar, sem ligação com a polícia judiciária, sem conexão com trabalho de investigação, sem nenhum lado social. Daí esse momento inicial passou e hoje várias comunidades com UPP têm tiroteio todo dia. Depois que os policiais estão lá durante algum tempo, os traficantes voltam e há um rearranjo de forças que passa pelo acerto de um novo "arrego" com os agentes da autoridade ou pelo confronto. Ou é arrego ou é bala. E a polícia está atirando muito. Eu dou aula em uma escola no complexo da Maré (na Zona Norte do Rio) e todo dia o caveirão passa atirando. Casos como o desses cinco jovens não são um problema psiquiátrico do policial, não são porque o policial é louco ou estava drogado, e sim porque faz parte de uma política de segurança que incentiva o cofronto. O policial está lá na ponta, e, como ele atirou, é claro que a culpa dele, mas é culpa também do do comandante da PM, do secretário de Segurança, do governador. A teoria das maçãs podres está errada, isso é resultado de procedimentos rotineiros da polícia.

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O corporativismo dita os inquéritos?

Antes de abordarmos os autos de resistência, estávamos pesquisando homicídios. Cheguei então a uma delegacia e um policial me mostrou o armário em que estavam as pilhas dos processos. E tinha uma pilha em separado. Eu perguntei o que era e ele disse: "aqui é auto de resistência, isso aqui não te interessa". Ou seja, ele já tratava a morte em auto de resistência como outra coisa que não homicídio, a classificação administrativa concedia outro status para o caso, e desde o momento em que o registro é feito ele é tratado de modo diferente. A maior parte dos casos é arquivada e os que chegam a ter processo é porque um juiz fez uma análise mais aprofundada dos critérios e decidiu não arquivar porque tinha tiro de curta distância, tiro pelas costas. Também há o caso de promotores que desconfiaram porque sempre os mesmos policiais matam muito em determinada área e resolveram denunciar todo mundo. Ou quando há mobilização de ativistas e da população. Há mais chance de haver um processo legal correto quando há mobilização da comunidade indo protestar na delegacia. Mesmo quando o caso for de fato legítima defesa, como devem ser alguns casos, deveria haver um processo, porque partir da fé pública do agente, da presunção de inocência, da exclusão da ilicitude, enviesa o inquérito e aceita só a verdade policial.

Caco Barcelos já denunciava em seu livro Rota 66 que a PM de São Paulo alterava as cenas de crime sob pretexto de oferecer socorro médico. Acontece o mesmo no Rio?

Das centenas de inqúeritos e processos que acompanhei, conto nos dedos de uma mão os casos em que houve perícia no local. A gente analisava cada página e os boletins de atendimento médico diziam "já chegou cadáver". Conclui-se daí que em muitos casos, supostamente para prestar socorro, se desfez a cena do crime. Por que a autoridade policial não vai à cena do crime? Existe também um corporativismo entre a PM e a Civil. O delegado dificilmente vai colocar fraude processual em um inquérito contra a PM. Perguntei a promotores e juízes o que fazer, e eles me dizem: "no nosso nível é tarde. Quem deveria fazer isso seria o delegado". E muitas vezes fica por isso mesmo.

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