Há deputados que se irritam. Primeiro, Gilmar Mendes chicoteia o PT - diz que o partido teria "o plano perfeito" para "se eternizar no poder" - e depois Luiz Fux avalia como "inaceitável" o comportamento do Congresso.
Inaceitável porque boa parte do parlamento tem se articulado para derrubar decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Não é de hoje que os ministros da corte - Mendes e Fux, inclusive - são acusados de invadir a autonomia do Legislativo. O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ao comentar as estratégias para anular determinações do tribunal, avisa com certa ironia que "é um dia depois do outro".
- Há uma tensão institucional entre os poderes, é inegável - analisa a professora de Direito Constitucional Samantha Meyer, da Universidade Nove de Julho (Uninove), de São Paulo.
Vamos às razões do confronto. Após aprovar o financiamento de campanha por empresas, a Câmara viu a suprema corte proibi-lo no mês passado. Por oito votos a três, o STF entendeu que as doações empresariais desequilibram a disputa eleitoral, ferindo os princípios de isonomia e igualdade previstos na Constituição.
Pois mude-se a Constituição. Eduardo Cunha se empenha para agilizar a tramitação de uma proposta de emenda constitucional (PEC), já aprovada na Câmara - mas que ainda precisa ser votada no Senado -, legalizando em definitivo o financiamento de empresas.
- O Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição, que é a lei suprema. É dele a última palavra sobre os princípios e as cláusulas pétreas, que devem ser cumpridos também pelos outros poderes - explica o professor André Ramos Tavares, da Universidade de São Paulo (USP), autor do Manual do Poder Judiciário (Saraiva, 2013).
Quer dizer, se os ministros entenderem que os "princípios de isonomia e igualdade" continuarão ameaçados, até a PEC que liberaria as doações empresariais poderá ser vetada. O primeiro secretário da Câmara, deputado Beto Mansur (PRB-SP), discorda. Para ele, o Legislativo tem a prerrogativa de alterar a Constituição:
- Eu, por exemplo, recebo financiamento de quem acredita na minha atuação. Recebi do Gerdau porque defendi a privatização do setor siderúrgico. Não é que ele esteja me devolvendo; ele apenas acredita que vou defender o setor. Uma coisa absolutamente normal - garante Mansur.
Outra queda de braço envolve a união homoafetiva. Por unanimidade, em 2011, o Supremo autorizou a união de casais do mesmo sexo com base no artigo 3º da Constituição, que veda preconceitos de raça, origem, sexo, cor, idade ou "quaisquer outras formas de discriminação". Há 10 dias, no entanto, a comissão especial da Câmara que discutia o Estatuto da Família aprovou o texto principal do projeto, definindo como família, para fins da lei, a união só entre homem e mulher. Caso o texto seja endossado nos plenários da Câmara e do Senado, é provável que o STF seja provocado a se pronunciar.
- É uma mecânica normal da democracia, não há nada de errado nesse vaivém. Isso ocorre porque temos três poderes funcionando, e graças a Deus são três. Em uma ditadura, aí sim, o Executivo submete o Legislativo e o Judiciário à sua vontade - diz o jurista Joaquim Falcão, diretor da FGV Direito Rio e autor do livro O Supremo (Edições de Janeiro, 2015).
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Falcão lembra que na Alemanha, em 2012, o plano de Angela Merkel para ajudar a combalida Espanha precisou passar pelo Supremo. Nos Estados Unidos, foi a suprema corte que aprovou o sistema de cotas e a união homoafetiva. E a descriminalização da maconha, na Argentina, também foi decidida no tribunal constitucional. Mas por que, no Brasil, esse protagonismo do STF parece cada vez mais intenso?
- O Supremo se torna mais proativo em assuntos sobre os quais o Congresso, por algum motivo, não chegou a legislar. Foi o que houve no caso da união homoafetiva, em que não havia lei específica - responde o ministro da corte Luís Roberto Barroso.
Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o deputado Arthur Lira (PP-AL) concorda:
- É indiscutível que nós, do parlamento, temos uma dificuldade muito maior para caminhar do que um tribunal com 11 membros. Há uma diversidade enorme em um ambiente de 500 deputados, que, além de divergirem entre si, em muitos casos evitam votações polêmicas por receio de desgaste com o eleitor.
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O professor de Direito Constitucional Rubens Beçak, da USP, lembra que o papel do Supremo cresceu exponencialmente desde a redemocratização, quando uma Constituição muito mais extensa e cheia de princípios subjetivos para serem interpretados foi aprovada pelo Congresso. Depois, o próprio Congresso ainda concedeu mais poderes ao STF. Em 2004, o parlamento aprovou a chamada súmula vinculante, que permite ao Supremo editar documentos norteando decisões de todos os tribunais do país. Dois exemplos: as polícias só podem usar algemas em caso de resistência do preso; e só a União, nunca os Estados, pode autorizar o funcionamento de bingos.
- É evidente que o Supremo está atuando em matérias que não eram dele. E não creio que isto seja bom - pondera a professora de Direito Constitucional Samantha Meyer. - A questão da união homoafetiva, que agora volta à tona com o Estatuto da Família, por exemplo. O fórum para decidir sobre isso é o Congresso. Por mais que eu seja a favor do casamento gay, será que a decisão do Supremo reflete o que a maioria da sociedade pensa?
Talvez não. Mas, conforme o jurista da USP André Ramos Tavares, as cláusulas pétreas da Constituição são, de fato, antimajoritárias. Ou seja, não interessa se a maioria for favorável à pena de morte, à censura ou ao acesso estatal de documentos privados: a Constituição proíbe tudo isso com base em princípios e direitos.
- A ideia é justamente contrariar o governo da maioria. Porque a democracia não é da maioria, ela é de todos, inclusive da minoria. Decisões contrárias à maioria fazem parte do processo democrático, e isso está na base da Constituição - afirma André Ramos Tavares.
O professor Rubens Beçak complementa:
- Há um fenômeno mundial de busca por mais direitos, e isso envolve as mulheres, os homossexuais, envolve inclusive a crise dos refugiados. Esse momento exacerba o papel do Poder Judiciário, ao qual as pessoas podem recorrer. Mas o Supremo, é bom lembrar, nunca vai atuar em um espaço bem regrado pela lei. Ele vai sempre atacar o vazio.
OUTROS ROUNDS
Casos em que Legislativo e Judiciário bateram de frente
FIM DOS PARTIDOS NANICOS
Jarbas Vasconcelos em debate no Congresso sobre o fim dos partidos nanicos, em 2006
Foto: J. Freitas, Agência Senado
No final de 2006, o STF derrubou a cláusula de barreira - dispositivo aprovado pelos deputados e senadores que, na prática, impediria os pequenos partidos políticos de acessarem o fundo partidário e de aparecerem no horário eleitoral. O Supremo entendeu que a regra era inconstitucional porque atentava contra a autonomia das siglas, prevista na Constituição.
TERRAS INDÍGENAS
Estudantes indígenas da UnB fazem marcha na Esplanada dos Ministérios
Foto: José Cruz, Agência Brasil
Acusado por deputados ruralistas de extrapolar suas atribuições, o Supremo decidiu em 2009 que a terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, deveria ser evacuada pelos produtores rurais que ocupavam aquela área de 1,7 milhão de hectares. Atualmente, parlamentares tentam transferir para o Congresso a decisão final sobre as demarcações de terras indígenas.
ABORTO ANENCEFÁLICO
Jovem grávida de bebê anencéfalo
Foto: Gerson Pantaleão, Especial ZH
Sob protestos da bancada evangélica, o STF autorizou em 2012, por oito votos a dois, o aborto em casos de fetos sem cérebro. Uma proposta de emenda à Constituição do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, tramita na Casa com o intuito de reverter a situação, determinando que o direito à vida é garantia de todos "desde a concepção", incluindo, portanto, o feto.
CONSUMO DE MACONHA
Marcha da Maconha no gramado do Congresso Nacional
Foto: Valter Campanato, Agência Brasil
Embora a legislação atual, aprovada pelo Congresso, defina o consumo de drogas como crime, três ministros do STF já se posicionaram a favor da descriminalização do porte de maconha. A ideia é garantir o direito constitucional à vida privada. Em seu voto, no mês passado, Luís Roberto Barroso sugeriu que o porte de "25 gramas ou de seis plantas fêmeas" não seja considerado crime até que o Congresso estabeleça um critério definitivo.