*Professora de literatura, autora de livros, de ensaios e de poesia
Efemérides como a dos 70 anos de A Rosa do Povo (1945) e os 113 do nascimento de Carlos Drummond de Andrade (1902), comemorados neste dia 31 de outubro, ainda sugerem algo a dizer sobre a obra de quem passou a vida a perquirir a palavra. Bem sabemos que o menino destinado a guardar Itabira na parede e no coração já adivinhava que a sua história seria mais bonita que a de Robinson Crusoé. Em Minas, foi expulso do colégio por insubordinação mental a pedido de um professor de português. Em 1934, transfere-se para o Rio de Janeiro, então capital brasileira, centro irradiador de cultura e arte. Ali a figura do funcionário público mistura-se à pele do sujeito que andava pelas calçadas e escrevia crônicas para o Jornal do Brasil. Poeta de alcance internacional, Drummond foi cronista, contista e tradutor. Sua obra é constitutiva da memória brasileira e permanece aberta às novas gerações.
Cartas trocadas entre professora gaúcha e Carlos Drummond de Andrade são tema de documentário
A poesia de Drummond recupera temas clássicos como o amor, a morte, a pátria, conferindo-lhes modernidade sob os efeitos da sua própria e diversa voz. Possuidor de um sentimento do mundo, foi atento às idiossincrasias do século 20, figurando ao mesmo tempo a cidadezinha, a família mineira, a figura do pai. A cena urbana, o jornal, os fatos da história, a guerra, a morte, a mecanização da vida, a aceleração do tempo, a fragmentação do indivíduo, o lugar da comunicação, a memória e a crise da palavra são centrais no suceder dos livros de 1930 a 1987 e ainda nos livros póstumos. Seus poemas fogem de padronizações e se concretizam do lírico ao cômico, do solene ao paródico, do dramático ao trivial. Alguns podem vir à lembrança, como Poema de Sete Faces, Quadrilha, José, Procura da Poesia, Caso do Vestido, O Mito, A Máquina do Mundo, Ao Deus Kom Unik Assão, As Contradições do Corpo e outras centenas. Carlos foi inventor lúcido e desencantado de um anjo torto, compositor de Quadrilha, poeta de A Flor e a Náusea, regente de um Canto Órfico, fotógrafo de Os Mortos de Sobrecasaca, pintor da metrópole e das casas de Ouro Preto, jornalista de As Impurezas do Branco, cantor de Charles Chaplin, quase cineasta em Nosso Tempo, lutador da palavra com seus tons e semitons.
Mas hoje quem lê poesia? Quem tem tempo para ler ou escrever cartas, uma só que seja? Missivistas morrem, carteiros escasseiam e até a arte de escrever cartas por hábito ou como gênero literário (epistolografia) claudica rumo à extinção por falta de tempo, sentido ou uso futuro. Cartas - outrora imprescindíveis meios de comunicação, registros de épocas, baús de segredos, estilos individuais - agonizam agora em sua prática e utilidade.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, há séculos disse Camões. Rompem-se as formas e o tempo do escrever. A quase totalidade da comunicação escrita atinge há décadas seus fins e destinatários por novíssimos meios. Embora rápidos na caducidade, tais meios garantem qualidade e velocidade quanto ao contato direto e expectativa de resposta imediata sob a previsão ou o desejo do (por enquanto) chamado usuário, antes remetente ou emissor. Ninguém tem tempo. E correm e correm de um para outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa, escreveu Drummond há décadas.
Três programas para fazer no fim de semana
Como muitos dos seus contemporâneos, o poeta escreveu muitas cartas. Em levantamento realizado na Casa de Rui Barbosa (RJ) registram-se 1.811 signatários de uma geração que escrevia e lia cartas por razões intelectuais e afetivas. Além de cartas arquivadas de muitos países, encontram-se entre os seus correspondentes escritores e outros representantes de uma elite letrada brasileira: Mário de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Ciro dos Anjos, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Pedro Nava, Emílio Moura, Abgar Renault, Antonio Candido, Gustavo Capanema, José Mindlin, Otto Maria Carpeaux.
De enorme significação é a correspondência entre Drummond e sua única filha, Maria Julieta Drummond de Andrade. Escritora, cronista, trabalhou muito pela divulgação da literatura brasileira em Buenos Aires, onde viveu casada por muitos anos e onde nasceram seus três filhos. É conhecida a afinidade intelectual e literária entre pai e filha, amplamente cultivada ao longo dos anos. Quando Maria Julieta era criança, a cumplicidade se fazia por desenhos e bilhetes. Em agosto de 1987, Maria Julieta morreu no Rio de Janeiro, aos 59 anos de idade. Drummond se foi 12 dias mais tarde. O poeta guardava o conjunto da preciosa correspondência, que incluía a primeira carta da filha, escrita aos oito anos de idade. Em 2012, com o consentimento da família na pessoa de Pedro Augusto, filho de Maria Julieta, as cartas vêm a público em São Paulo num monólogo encenado pela atriz e diretora Sura Berditchevsky.
Pois eis que em 2015, por esses dias, estreia em Porto Alegre e no Rio de Janeiro o documentário O Último Poema, sob a direção de Mirela Kruel. Trata-se de uma bela composição de imagens, depoimentos e cartas. Cartas? Sim, novamente cartas. Cartas inéditas de Drummond e de Helena Maria Balbinot Vicari, professora de Guaporé, fiel correspondente por 24 anos até a morte de Carlos Drummond de Andrade, em 17 de agosto de 1987.
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CINEMA
- Está em cartaz em Porto Alegre, no Guion Center, O Último Poema. Dirigido por Mirela Kruel, o documentário conta a história da correspondência que a professora gaúcha Helena Maria Balbinot Vicari manteve com Carlos Drummond de Andrade, de 1961 até 1986. O filme equilibra passagens documentais e reencenações estreladas pelos atores Janaína Kraemer e Rodrigo Fiatt.
- Estava marcada para este sábado, às 19h, no Cine Santander, uma sessão comentada do filme com a participação da diretora, como parte da programação da Feira do Livro de Porto Alegre - 31 de outubro era o dia do aniversário de Drummond.