*Arquiteto. Professor da UniRitter
A revitalização de espaços portuários de grandes cidades, tendo sido proposta pela primeira vez em meados do século passado, na cidade de Baltimore, nos Estados Unidos, apresenta-se hoje como tendência mundial. O aumento do porte dos navios e a demanda de maior espaço para armazenamento de cargas são alguns dos motivos que têm tornado necessários novos portos adequados a essas demandas. Melhor localizados e devidamente dimensionados, esse novos portos acabam por determinar o desuso e o abandono de enormes áreas localizadas, no geral, junto a zonas centrais das cidades. Percebendo o potencial social, cultural e econômico desses espaços, projetos para sua reutilização têm surgido com a intenção de devolvê-los à sociedade devidamente estruturados, permitindo uma reintegração da comunidade com suas antigas áreas portuárias.
A revitalização em espaços portuários visa a possibilitar que esses locais sejam repensados de forma a permitir o desenvolvimento de novas atividades - de serviços e de recreação - com a finalidade de devolver esses ambientes ao corpo urbano. Dessa forma, a cidade ganha novas opções de lazer e cultura, e incrementa-se, como consequência direta, a oferta de empregos. Porém, nem todos concordam com essa visão. No geral, as críticas se concentram no fato de que esses processos acabam se tornando elitizantes, excluindo as camadas menos favorecidas da população do seu contexto. Com Puerto Madero foi assim, com o porto de Belém, igualmente, só para ficar com dois exemplos próximos. Agora, aqui em Porto Alegre, grupos contrários ao projeto de revitalização do Cais Mauá retomam, com razão ou não, esse enfoque.
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Coordeno na UniRitter um projeto de documentação independente, de total responsabilidade da universidade, que busca fazer um registro fotográfico a respeito das alterações que irão se dar na área do Cais Mauá e no seu entorno no transcurso das obras de revitalização. Por conta desse envolvimento, tenho acompanhado com interesse os debates que se desenrolam em torno da pertinência ou não do projeto em vias de implantação.
Porto Alegre se caracteriza por ser uma cidade contestadora, na qual todo e qualquer projeto é debatido à exaustão. No caso da revitalização do Cais Mauá, não está sendo diferente. Com a possibilidade de início das obras para os próximos meses, esse debate se intensificou, com enxurradas de opiniões pela imprensa e pelas redes sociais, algumas coerentes e bem fundamentadas, outras com pouco lastro ou baseadas em desinformações, mas todas contundentes. O foco dessas discussões concentra-se, no geral, no fator elitizante do projeto e nos serviços previstos para a área.
Quanto à acusação de "elitizante", uma melhor análise talvez tenha que ser feita. Em sua primeira fase, o projeto prevê a reforma e a recuperação da totalidade dos armazéns, bem como de sua área de entorno, o que se dá ao longo de uma grande linha com mais de um quilômetro de extensão. Quando concluída essa fase, os armazéns irão abrigar espaços culturais, bares, restaurantes, cafeterias, livrarias e lojas, assim como sua área de entorno será reurbanizada, abrigando espaços públicos com praças e áreas de lazer. Tudo livremente franqueado ao público. Não me parece que esteja aí uma proposta especificamente elitizante e por certo não é em relação a isso que os grupos contrários à ideia estão se manifestando.
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Na segunda fase, possivelmente a que concentra o foco dos protestos, prevê-se a implantação de um shopping e de três torres comerciais. Esse ponto, no entanto, também merece uma boa reflexão. Certas opiniões contrárias ao projeto buscam compará-lo a outros, realizados em cidades ricas do Primeiro Mundo, com propostas que apresentam um foco menos comercial, mais direcionado ao social. Essas, no entanto, são comparações complicadas, pelo fato de serem baseadas em projetos inteiramente geridos por prefeituras ricas, com poder de executarem sozinhas suas propostas, sem preocupações relativas à viabilidade econômica ao final do processo. No caso de Porto Alegre, uma cidade sem recursos sequer para manter suas praças e seus parques, Capital de um Estado falido, a solução passa obrigatoriamente pela iniciativa privada, o que altera radicalmente o contexto. Ao final do processo, eventuais investidores exigirão retorno financeiro. Essa é uma regra básica do capitalismo, sistema no qual, infelizmente, estamos inseridos. A solução advinda daí não é, obviamente, a ideal, mas a possível, e é com soluções possíveis que temos que atuar, caso contrário corremos o risco de criar impasses incapazes de serem superados. Por outro lado, e isso sempre é bom lembrar, muitos dos que contestam costumam rasgar elogios ao porto de Barcelona, esquecendo de mencionar, de forma um tanto contraditória, suas duas imensas torres e seu shopping.
Nossa área portuária encontra-se desativada desde a década de 1970, e as primeiras propostas para sua revitalização datam de mais de 20 anos, no início dos anos 1990. De lá para cá, três concursos foram realizados, milhares de horas de debate e discussões foram gastas para, finalmente, chegarmos ao atual processo. O que me parece é que a corrente discussão, democrática e saudável, fora de qualquer dúvida, chegou em momento errado. Caso seja concretizado o embargo sugerido por um dos grupos contrários, talvez tenhamos mais 20 anos de debates e projetos para, lá no final, chegarmos a uma conclusão que também não será consensual e correrá o risco de mais um embargo. Durante a Copa 2014, no evento denominado Embarcadero, nas dependências do cais Mauá, o porto-alegrense já manifestou seu interesse em ocupar a área. O significativo afluxo de pessoas ao local foi uma sinalização inequívoca nesse sentido.
Mesmo com seus pontos questionáveis - há necessidade de mais um shopping para a cidade? Qual o real impacto da implantação de torres nas margens do Guaíba? - sou favorável a implantação desse projeto que está proposto, com alterações ou não. Porto Alegre precisa ocupar a área do Cais Mauá antes que o abandono e a degradação acabe de vez com ela.
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