* Doutor em Filosofia, coordenador do curso de Filosofia da PUC-SP. Autor de Política e Tempo em Giorgio Agamben (EDUC, 2014)
No dia 2 de dezembro de 1970, Michel Foucault ministra a primeira aula da cadeira História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France - publicada posteriormente sob o título A Ordem do Discurso - depois da aprovação em um concurso que teve como concorrente ilustre o filósofo Paul Ricoeur. Da aula inaugural à morte de Foucault, ocorrida em 1984, foram 12 anos de cursos. Apenas em 1977, o filósofo goza de um ano sabático.
A dinâmica de ensino do Collège possui muitas peculiaridades, uma delas é não oferecer qualquer diploma aos estudantes, a outra, de ser voltada à produção e divulgação das pesquisas de seus docentes. Mesmo preparados com vistas à exposição didática, os cursos de Foucault representam uma referência decisiva não apenas para as pesquisas em torno do corpus foucaultiano, mas como campo de questões importantes para a filosofia do presente, vale mencionar a diversidade de filósofos preocupados com questões do século 21 que se debruçaram sobre estes arquivos, sendo o italiano Giorgio Agamben um dos casos exemplares.
Para quem conhece Michel Foucault tão somente como o filósofo da análise microfísica do poder psiquiátrico, hospitalar e penitenciário, ler os cursos de 1970 - 1984 poderá ser uma experiência de sobressalto intelectual. Estes documentos representam um plano importante e singularíssimo de desenvolvimento da filosofia foucaultiana, infelizmente inconclusa pela precoce morte do autor. Eles nos mostram um professor/pesquisador preocupado com a problematização das perguntas clássicas em torno das teorias da soberania, ou seja, da fundamentação e da justificação do poder no Ocidente e do surgimento daquilo que Foucault chamará de um paradigma governamental no interior da política moderna, levando-o a perquirir, em extraordinário trabalho de pesquisas e leituras, sobre temas que vão do surgimento de novas técnicas de segurança ao governo biopolítico, passando por leituras críticas e atentas das fontes teóricas do neoliberalismo, pela análise de tecnologias de subjetivação pré-modernas e modernas, como o cinismo antigo, a pastoral cristã nos primeiros séculos da igreja ou a parresía (a coragem da verdade) no interior da filosofia grega clássica.
A história da recepção e da fortuna crítica dos cursos de 1970 - 1984 poderia ter um capítulo importante em solo brasileiro. Em 2012, o Collège de France fez a doação à PUC-SP dos áudios originais dos cursos de Foucault, em ato intermediado pelo Consulado Geral da França em São Paulo, fazendo da universidade a única instituição fora da França a possuir esse acervo.
A doação dos arquivos fez parte dos atos preparatórios para a criação da Cátedra Michel Foucault e a Filosofia do Presente, pensada como um espaço latino-americano de pesquisas de excelência na obra de Michel Foucault e em questões filosóficas contemporâneas, aproveitando a presença de uma pesquisa consolidada da obra de Michel Foucault no departamento de Filosofia da PUC-SP e do convênio com o Collège International de Philosophie e mais oito universidades internacionais.
Em um país de tradição acadêmica recente, em que o próprio conceito de universidade e de liberdade de pesquisa é pouco compreendido, o Conselho Superior da Fundação São Paulo (Mantenedora da PUC-SP), órgão formado por bispos e pelo Cardeal da Arquidiocese de São Paulo, Dom Odilio Scherer, mesmo após a aprovação da cátedra em todos os órgãos acadêmicos da PUC-SP, em especial o Conselho Universitário, decidiu vetá-la pois o pensamento de Foucault, segundo argumento dos bispos, em tese "conflitaria com princípios católicos que norteariam a instituição".
O argumento de que o pensamento de Foucault contraria os princípios católicos é pueril. E em nenhum momento o pensador francês demonstrou ter sido "agressivo contra a Igreja", como alegam os que defendem a proibição. De todo modo, como seriam frágeis estes princípios milenares se precisassem se salvaguardar contra as pesquisas de um professor do Collège de France já falecido, um professor que privilegiou o olhar daqueles excluídos hoje tão citados e defendidos no papado de Francisco: os loucos, os prisioneiros, os hospitalizados, os refugiados, a vida dos homens que não deixam rastros nos arquivos monumentais da história.
O problema é que tal argumento, do conflito com uma religião, não deve ser colocado como óbice para qualquer tipo de atividade acadêmica, mesmo se as cátedras fossem entidades simplesmente honoríficas, como desejam os bispos do Conselho da Fundação São Paulo. O próprio bispo que redigiu o parecer contra a cátedra poderia ter se beneficiado, na pesquisa para este documento, dos arquivos que a biblioteca da Universidade possui com exclusividade, e mesmo a questão "o pensamento de Foucault está de acordo com os princípios cristãos?" poderia ser melhor desenvolvida com a utilização de material da cátedra, o que só mostra que a pesquisa livre só é perigosa para os inseguros de sua própria posição.
Em 1º de novembro de 1970, um mês antes do professor Foucault iniciar sua cátedra no Collège France, Paulo Evaristo Arns assume o arcebispado em São Paulo. Os caminhos do professor e do cardeal se cruzarão em 31 de outubro de 1975, em ato ecumênico na catedral da Sé realizado em memória de Vladimir Herzog, cujo assassinato foi apresentado oficialmente como "suicídio". Uma das oito mil pessoas em protesto silencioso dentro da catedral disse, dias depois:
"A comunidade judaica não ousou fazer exéquias solenes. E foi o arcebispo de São Paulo que promoveu, na catedral metropolitana, uma cerimônia, aliás ecumênica, em memória do jornalista: o evento atraiu milhares de pessoas à igreja, à praça etc. O cardeal, de vestes vermelhas, presidia a cerimônia: caminhou diante dos fiéis e os saudou exclamando "Shalom, shalom". A praça estava cercada por policiais armados e na igreja havia diversos policiais à paisana. A polícia recuou: não podia fazer nada contra isso."
Essa testemunha, citada em Vingt Ans Et Après, de Thierry Voeltzel (1978), foi Michel Foucault, que neste período ministrava cursos em São Paulo, em uma década em que a PUC-SP recebia, com o apoio de Arns, professores e estudantes cassados nas universidades públicas brasileiras, a mesma década do primeiro incêndio criminoso de seu teatro, das reuniões clandestinas da SBPC e da invasão militar das tropas de Erasmo Dias.
Tempos de violência e obscurantismo que não deixam de ecoar no presente.