* Paulo gleich é Jornalista e psicanalista. Escreve mensalmente.
Anos atrás, buscando um apartamento para comprar, fui visitar muitos imóveis ainda habitados por seus proprietários. Era um exercício difícil: além de atentar aos aspectos técnicos, tinha de abstrair dos elementos pessoais que compõem um lar para imaginar se ali poderia fazer o meu. Entrava constrangido, sentia-me invadindo a intimidade de pessoas com quem não tinha intimidade alguma. Nossos cantos e paredes falam muito de quem somos, tanto é que não os mostramos a qualquer um.
Talvez por isso sempre tenha ficado um pouco perturbado com reportagens como a exibida duas semanas atrás no Fantástico, sobre uma mulher encontrada morta em sua casa sob uma gigantesca pilha de roupas. O desconforto não foi tanto pela morbidez da notícia, mas pelas imagens que acompanhavam a matéria. A repórter caminhava pelos quartos, mostrando com espanto a quantidade de objetos empilhados e sobrepostos. Mesmo que a dona da casa não estivesse viva para se constranger, não deixava de ser uma invasão, uma exposição de sua intimidade.
No jargão médico, pessoas como ela são chamadas de acumuladores compulsivos. Esse quadro tem despertado grande interesse público, tanto que há, na TV, um programa dedicado apenas a mostrar casos (e casas) como esses. As câmeras levam nosso olhar curioso e fascinado para dentro dos lares de sujeitos que não conseguem se desfazer de seus objetos, acumulando cada vez mais coisas, muitas aparentemente sem valor algum. À irresistível atração do voyeurismo somam-se o espanto causado pela visão de salas, quartos e corredores abarrotados de objetos e a incompreensão do que leva alguém a viver em semelhantes condições.
A loucura, para além da condição médica, tem a capacidade de nos interrogar sobre aquilo que consideramos normal. Quando fazia estágio em um hospital psiquiátrico, muitas pacientes andavam sempre grudadas em suas bolsas repletas de objetos, alguns úteis como cigarros e maquiagem, outros mais enigmáticos e até considerados lixo. O estranhamento que esse apego às bolsas gerava em alguns me fazia certa graça: acaso não era semelhante à relação que as mulheres "normais" têm com as suas, apenas com diferenças na forma e no conteúdo? Nosso estranhamento muitas vezes funciona como uma proteção, para evitarmos enxergar a loucura contida na normalidade.
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O que os acumuladores compulsivos nos mostram, em um espelho distorcido no qual nos reconhecemos apenas pelo estranhamento, é que (quase) todos somos acumuladores. Possuímos uma miríade de objetos, cuja presença em nossas casas diz muito mais dos ditames da nossa cultura que de necessidades reais. Por que três banheiros em uma casa com duas pessoas? Para que três aparelhos para fazer o que uma simples faca resolve? De que servem 20 pares de sapatos se só podemos usar um por vez? Não nos damos conta de como enchemos nossas casas com coisas, salvo em ocasiões como mudanças, nas quais é frequente o espanto ao deparar com a quantidade de objetos acumulados.
Não é à toa que uma das palavras de ordem mais repetidas atualmente seja "desapega!": é uma certa tentativa de resistir ao mandato que nos empurra a comprar, ter, acumular. Ao mesmo tempo, sua insistência traduz nosso fracasso em abrir mão de encontrar, em objetos de consumo, um suporte para nossa existência. Roupas não servem apenas para nos aquecer ou tapar nossos corpos, smartphones não são apenas aparelhos para nos comunicarmos: dizem de como nos apresentamos aos outros e a nós mesmos. Precisamos de objetos não apenas para sobreviver, mas também para compor a imagem de quem somos - ou gostaríamos de ser. Idealizamos quem consegue prescindir dessa escravidão moderna porque nós mesmos temos muita dificuldade de nos desvencilhar dela.
Acumuladores compulsivos expõem essa relação com os objetos com uma crueza ímpar, e talvez por isso nos deixem tão fascinados. Não conseguem "desapegar" de nada: qualquer coisa se torna imprescindível, constitutiva de sua casa-corpo. Realizam, de forma grotesca e sem atentar aos critérios de valor ditados pela cultura, o ideal de nossa época de possuir o máximo possível. E também colocam uma pergunta inquietante, que, ao classificá-los como loucos, evitamos encarar: na relação que estabelecemos com os objetos, quem possui quem?
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