* Jornalista e psicanalista. Escreve mensalmente no caderno PrOA.
Dias atrás, num supermercado, uma amiga sentiu um carrinho bater em seus calcanhares. Antes que pudesse reagir, escutou uma voz raivosa em seu ouvido: "Sai da frente, sapatão!". Seguiu-se uma série de ameaças e ofensas, que culminava em uma convocação dos militares para "dar um jeito no país" e "acabar com todas vocês".
O ofensor era um senhor de seus 60 anos, sua ação violenta havia sido desencadeada pela mera presença de minha amiga. Ela relatou-me outros episódios de agressões a amigos próximos, ainda mais violentos que esse, todos com o mesmo motor: a (suposta) homossexualidade da vítima. Seus relatos se unem a outros, que têm circulado na mídia e nas redes sociais, e que dão nomes e rostos à frieza dos números que indicam que há ainda muita violência contra quem, com sua existência, desvia da norma.
Na mesma semana, fui a uma barbearia na qual chamaram-me a atenção pequenos quadros na parede, exaltando aquele espaço como "lugar de macho". Enquanto era atendido, acompanhava as discussões, que giravam em torno de assuntos da atualidade. Todas as respostas para as questões políticas, econômicas e sociais passavam por intensificar o controle e a repressão, quando não a violência. Havia algo de caricaturesco naquela situação, que seria cômica se não fosse trágica: o anacronismo decadente do lugar combinava com o das discussões. O trágico é como ainda gozam de popularidade estas "soluções de macho", que apostam na repressão para manter as pessoas nos lugares designados para elas.
Só que as pessoas não têm se acomodado tão facilmente nesses lugares como outrora. Há cada vez mais pessoas que consideram os "vagabundos" cidadãos dignos de atenção, assim como outras formas de desejar e constituir laços amorosos e familiares têm sido acolhidas. A conquista de um quinhão do espaço e do discurso públicos por mulheres, homossexuais e outros que não homens brancos heterossexuais vem tirando estes de seu trono, naturalizado durante séculos. Muitos têm dado as boas-vindas a essa intromissão: reconhecem as diferenças - que são inegáveis -, mas interrogam as relações de dominação e poder que se constroem a partir delas. Podem dialogar, não se sentem ameaçados ou menos machos por não serem mais os únicos jogadores em campo.
Outros, porém, sentem-se atacados ao terem questionadas sua identidade e suas convicções, assim como ao serem instados a compartilhar prerrogativas até então exclusivas de seu time. O ódio e a violência com que alguns agem podem ser uma tentativa desesperada de se proteger de um perigo, que nesses casos é apenas imaginário: a presença do diferente em uma posição de igual interroga a ideia que se tem de si e do mundo. Quando não é possível questionar as próprias certezas, uma forma de manter a identidade intacta é eliminando aquele ou aquilo que as perturba. Esse outro, no entanto, já não é mais tão dócil frente às agressões, não se deixa mais silenciar ou eliminar sem barulho. E não estão mais tão sós: há cada vez mais pessoas fazendo barulho com e por eles - inclusive muitos "machos".
O que nossos tempos impregnados de feminismos e beijos gays têm desvelado é que o "macho" (assim como "a mulher", ou qualquer outra forma identitária) é uma construção humana, mesmo que esta seja calcada sobre diferenças reais. Seu poder apenas subsiste enquanto esta fantasia for compartilhada e sustentada pela maioria. Talvez cansados de estar à sombra, talvez insatisfeitos com os rumos tomados pelos "machos", muitos não têm mais aceitado sua exclusividade nesse lugar. Apesar de alguns radicalismos, talvez inevitáveis em tempos de crise e transformação, não se trata de dizimar os machos, como muitos podem paranoicamente temer. Porém, ao que tudo indica, seu reinado absoluto está dando seus últimos suspiros - ou, em alguns casos, gritos desesperados.
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