* Jornalista e Psicanalista. Escreve mensalmente no PrOA
Acompanhando o clima belicoso que tem tomado com frequência o Facebook, lembrei de uma professora da faculdade de Psicologia. Cabia a ela ministrar uma disciplina marcada por discussões acirradas, que não raro descambavam para um cego fogo cruzado. Nos momentos em que a qualidade da argumentação sucumbia excessivamente às paixões, ela anunciava: chega, a conversa foi pro boteco!
Discussão de boteco é assim mesmo: à medida que aumenta o teor etílico, sobe o tom de voz e cai o nível da argumentação. A seriedade do assunto é o de menos, do futebol à política discute-se tudo com semelhante paixão. Dificilmente arreda-se pé de uma posição, defendida no grito com falácias e ofensas, se preciso. Como se está entre amigos, porém, conta-se com o beneplácito deles para com deslizes, preconceitos e argumentos frágeis, assim como se tem mais tolerância para o que dizem e defendem. Em nome da amizade, nos fazemos cegos e surdos para superar as pequenas diferenças que cutucam nosso narcisismo, sempre à espera de encontrar nos outros alguém à nossa (idealizada) imagem e semelhança.
Nas redes sociais, com frequência as discussões acabam também indo para o boteco. Do debate ponderado passa-se ao uso de qualquer argumento para seguir tendo razão, mesmo que às vezes às custas da própria razão. Abundam ataques com ou sem alvo definido, ameaçam-se e anunciam-se bloqueios e unfollows para promover uma "limpeza", deixando de fora da rede aqueles que se julga não estarem à altura do convívio virtual. É uma solução possível, própria dessa praça pública contemporânea: basta um clic para estar longe dos olhos e do coração.
Esse espaço virtual que ainda estamos aprendendo a habitar pode tomar forma tanto de ágora quanto de mesa de bar. O que se escreve e publica, porém, tem um alcance bem além da roda de amigos, e é recebido pelo outro não apenas em função do conteúdo, mas também do laço que se tem com o interlocutor virtual. Somos mais propensos a curtir e a comentar com mais cuidado postagens daqueles que gostamos, assim como a desgostar, criticar ou até mesmo atacar aqueles a quem somos indiferentes ou mesmo por quem nutrimos certa inimizade. A distância física do outro também nos torna mais corajosos para emitir opiniões e xingamentos que dificilmente externaríamos em presença, sobretudo diante de pessoas com quem se tem menos intimidade.
O ódio que muitas vezes acaba se manifestando nas redes talvez venha da expectativa de se encontrar com um grupo de verdadeiros amigos, frustrada quando percebemos que de fato não é bem assim. Apesar dos filtros que organizam as conexões, pois nossas redes não são representativas da sociedade como um todo, nos defrontamos ali com uma pluralidade de visões de mundo e laços afetivos. Tamanha diversidade, não raro, surge como ameaçadora à nossa autoimagem, que não é tão autônoma como gostaríamos: ela precisa de alguma sustentação daqueles com quem temos laços afetivos.
O debate de ideias é fundamental para o crescimento não apenas individual, mas da coletividade. Para que frutifique, porém, para além da balbúrdia de uma conversa de boteco, é necessária a suspensão do julgamento, a escuta do outro, a tentativa de entender sua posição de enunciação, por mais preconceituosa ou equivocada que possa parecer. Lutar por ideias e ideais é parte fundamental da vida política, no sentido mais amplo daquilo que concerne à pólis, ao espaço público. Mas será que é isso que está em jogo na reiteração das próprias certezas e na desqualificação do outro nas redes sociais?
Ao ingressar nas ágoras virtuais, talvez fosse bom lembrar a sabedoria popular de que vale escolher suas batalhas, assim como ter em mente por que mesmo se está lutando. Temos liberdade para nos expressar, mas isso não precisa se traduzir numa obrigação de se manifestar a cada momento em que nos vemos interrogados ou atacados em nossas crenças e opiniões. Às vezes, silenciar também faz parte do convívio, e isso não necessariamente é omissão. Apesar dos encantos do mundo virtual, discussão de boteco segue sendo mais interessante e menos danosa com cerveja e amigos - e num boteco.
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