Lugar de encontros, troca de experiências e confraternização em torno dos livros, a Feira é também um palco de episódios inusitados. Um deles envolveu Celso Gutfreind, Fabrício Carpinejar e seu pai Carlos Nejar, trio de autores que se encontrou na semana passada e, bem, descubra o que aconteceu lendo o relato a seguir, assinado pelo primeiro:
Celso Gutfreind*
Eu estava na Feira do Livro com Nejar pai, o Carlos. E Carpinejar, o filho. O pai lançava um livro de poemas, e o filho, nos arredores, convidava-me para brincar. São assim os Nejares, adultos que se esqueceram de crescer. Ficam brincando com as palavras. Mas filho é filho e chega uma hora em que as palavras não bastam. E o Carpinejar me chamou para brincar com ele de brincadeira mesmo. Também tenho minhas pendengas com os crescimentos e aceitei.
Meu amigo inventou um polícia-ladrão modificado. Ele era o ladrão, e eu, a vítima. Enfiou a mão no bolso da minha calça e tirou um molho de chaves. Eu, é claro, fingia que não estava vendo. Depois, tirou o celular e abriu um sorrisão. Faltava picolé e pipoca para ficar completo, mas a gente se arranjava com o que tinha. Duas crianças juntas desconhecem a falta, dignificam a mentira e salvam a realidade.
O amigo levou o celular para o pai e disse:
- Presente pra ti.
O pai tinha encerrado os autógrafos. Por isso, talvez, ou por ser o mais infantil, aceitou a oferenda. Aceitar é pouco. Emocionou-se, comoveu-se e sequer disfarçou a lágrima no canto do olho esquerdo. Era um instante que vinha para ficar.
Carpinejar e eu saímos da brincadeira. Entendemos na hora que já não tínhamos o direito de acabar com aquela epifania. Seria um assassinato da sensibilidade, uma afronta ao encontro, um não sei que contra o mundo do que mais importa. Ora, não éramos disso.
Não houve ali troca de palavras, e a brincadeira acabou. Precisávamos conservar aquela ternura e nos tornarmos guardiões dela, custasse o que custasse. Carpinejar abriu a carteira, fez questão de pagar, smartphone? Diante de tudo, era barato. De graça, meu amigo, meus olhos responderam.
Não sei o que pensou o Fabrício, jamais retomamos o assunto. De minha parte, de volta ao mundo dos adultos, este lugar frio sem mãe nem pai, pensei no orelhão mais próximo para as ligações de curto prazo. Para as outras, compraria outro aparelho quando desse.
Jornal também é espaço de utilidade pública, então aí vai: se algum desavisado telefonar para mim e, em vez da minha, ouvir uma voz aveludada, grave, pode dizer que é engano.
Trocar a alegria de um pai por um aparelho eletrônico seria um engano bem maior.
* Psiquiatra, autor de A Dança das Palavras, entre outros títulos
Cadê meu smartphone?
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Celso Gutfreind relata episódio inusitado com Carpinejar e Carlos Nejar
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