A polêmica entre o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o bilionário Elon Musk, proprietário da rede social X, elevou a fervura da discussão sobre os inquéritos que apuram suposta disseminação de fake news, organização de milícias digitais para desestabilizar instituições e planos para um golpe de Estado que manteria no poder o então presidente Jair Bolsonaro, derrotado nas eleições de 2022.
Em um país dividido e radicalizado, Moraes, relator de mais de uma dezena de investigações, é herói e vilão. Transita desde a imagem de fiador da democracia até a de déspota. Uma querela que está pautando discussões na esfera pública.
A contenda mais recente começou no dia 6 de abril, quando Musk fez publicação no X questionando Moraes sobre suposta imposição de "censura" no Brasil. Ele ainda disse que desrespeitaria decisões e determinações de bloqueios de perfis associados a atos antidemocráticos.
Moraes não hesitou: incluiu Musk no inquérito das milícias digitais e abriu outra investigação para apurar se o bilionário praticou os delitos de obstrução à Justiça em organização criminosa e incitação ao crime.
A atuação de Moraes tem dividido as posições entre os que consideram as medidas salutares para proteger a democracia de campanhas de desestabilização lastreadas por mentiras, ante a permissividade das big techs, e os que apontam censura prévia e exorbitância de poder.
— O tema das redes é muito complexo. Nos casos que vi, não houve suspensão de contas por discordância em relação ao conteúdo. Há, sim, decisões de suspensão por espalhar mentiras, falsidades, ódio e condutas que são proibidas. São condutas que violam a legislação e, por isso, a ideia é de que não podem ficar circulando numa rede social — avalia Álvaro Palma de Jorge, professor da FGV Direito Rio.
Para o filósofo Denis Rosenfield, Musk exerceu liberdade democrática ao tecer críticas e Moraes errou ao incluí-lo em investigações.
— Não é possível que ele aja como polícia, como Ministério Público, como juiz de primeiro grau e como ministro do STF. Esses inquéritos em que ele põe qualquer coisa, como o das fake news, têm de acabar. Está produzindo desequilíbrio institucional. Alexandre deveria encerrar esses inquéritos e deixar de ter poder exorbitante e monocrático — examina Rosenfield.
É preciso fazer uma distinção: as suspensões de perfis reclamadas por Musk, ao menos em parte, foram determinadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que foi presidido por Moraes à época da eleição de 2022. No decorrer daquele pleito, o mais tenso e renhido da história do país, o TSE aprovou uma resolução que ampliava os poderes da Corte, incluindo a possibilidade de determinar de ofício, sem provocação do Ministério Público, a remoção de conteúdos da internet. Isso aconteceu diante do crescente volume de ataques infundados às urnas eletrônicas e que incentivaram o desrespeito ao resultado do pleito, além de convocarem "intervenção militar".
— Os poderes excepcionais que o TSE e o ministro Alexandre de Moraes assumiram em 2022 foram importantes para aguentar o tranco do movimento antidemocrático. Ao mesmo tempo, são poderes excessivos que não se justificam mais — diz Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP).
Para ele, é preciso "voltar aos trilhos".
— Tínhamos o entendimento de que só se retirava uma postagem depois de publicada. Foi mudado esse entendimento na crise de 2022 de forma até justificada porque tinha gente com comportamento reiterado publicando conteúdo ilícito, em campanha orquestrada contra a democracia. Fazia sentido naquele momento, mas acabou e faz tempo. E as contas continuam suspensas. Não temos ideia de quantas são. Ninguém sabe. Não vou me chocar se forem muitas — reflete Ortellado.
Os pontos destacados costumam balizar queixas de falta de transparência e de potencial censura prévia de parte do ministro. Críticos de Musk avaliam que ele age determinado por alinhamento político radical e supostos interesses empresariais.
Palma de Jorge amplia o leque analítico para o choque de culturas. O X é uma companhia dos Estados Unidos, e Musk é naturalizado norte-americano.
— A visão dos Estados Unidos do direito à manifestação é muito mais ampla. Eles têm tolerância com a mentira como forma de discurso que não temos no Brasil. Uma tolerância com o discurso racista e de ódio que não se admite no Brasil. É natural que, quando chega a decisão judicial, a companhia dos Estados Unidos fique com a sensação de que aqui se interfere mais do que o desejável — pondera.
Rosenfield destaca que Musk também exorbitou ao insinuar o descumprimento de decisões judiciais.
— Não é possível que qualquer empresa no Brasil esteja acima da lei. Qualquer indivíduo e corporação deve se subordinar. Nesse aspecto, Moraes tem razão — comenta o filósofo.
Na origem, abertura de inquérito de ofício
O começo de tudo é 2019, primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, quando ataques digitais de forma aparentemente organizada eram disparados contra o STF, com intentos de encerrar a instituição, incluindo ameaças a ministros e familiares. A então procuradora-geral da República (PGR), Raquel Dodge, entendeu que não havia motivo para agir. O STF, apontando ser alvo de narrativas fraudulentas, afirmou que não existe democracia sem um Poder Judiciário "livre".
O então presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, evocou o artigo 43 do regimento interno. O dispositivo permite que o presidente instaure inquérito de ofício, por sua iniciativa, sem a tradicional representação da PGR, quando ocorrer "infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal". Toffoli deu interpretação extensiva, considerando a rede social um ambiente de infração à lei no âmbito do STF, e designou Moraes para ser o relator do primeiro dos inquéritos, o das fake news (4781), em março de 2019. A forma como a apuração foi instalada é uma das principais divergências a respeito da eventual exorbitância de competência do STF.
Esse "inquérito mãe" foi gerando, posteriormente, outras investigações que estariam relacionadas. Inquéritos como os das milícias digitais, da tentativa de golpe de Estado e dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro foram se concentrando sob a relatoria de Moraes pela conexão, em vez da distribuição por sorteio.
Aí reside outro debate: se estaria Moraes concentrando poder exacerbado e exorbitando nas decisões ou agindo com a energia necessária diante do nível da ameaça pretensamente golpista.
— Todas as investigações estão penduradas no inquérito mãe. Tem uma coisa no direito que se chama conexão. Tudo o que for de fake news, golpismo e ataques antidemocráticos vai ficar dentro desse inquérito, que segura os demais. Isso só aconteceu por omissão do Ministério Público. Se não houvesse o regimento interno do STF, provavelmente não haveria mais democracia — afirma o advogado e ex-procurador de Justiça Lenio Streck, avaliando como constitucionais e necessárias as medidas.
Posição divergente tem o advogado criminalista Aury Lopes Junior. Em artigo de 2019, assinado em parceria com o juiz de Direito de Santa Catarina Alexandre Morais da Rosa, ele afirmou: "Quando um ministro ou seus familiares são vítimas, a competência para apuração das infrações é da polícia Civil ou Federal, em paralelo com o Ministério Público. Jamais pode o próprio STF avocar, com base em regra regimental, uma competência não existente na Constituição da República".
Em junho de 2020, por 10 votos a um, o plenário da Suprema Corte declarou a legalidade do inquérito das fake news. À época, o único voto contrário foi o do ex-ministro Marco Aurélio Mello: ele argumentou que o artigo 43 do regimento interno não encontrava guarida na Constituição. Marco Aurélio apontou que houve "violação do sistema penal acusatório", que separa as atribuições no mundo jurídico, pelo fato de o procedimento não ter sido provocado pela PGR ou pela Polícia Federal (PF). Para o então ministro, um vício de origem. É a base da crítica de que o STF estaria exercendo os papéis de acusador e de julgador, apesar de a PF e o Ministério Público Federal atuarem no trâmite dos inquéritos relatados por Moraes.
Palma de Jorge, da FGV Rio, destaca que os inquéritos têm um caráter de ineditismo por envolverem "ataques diretos" às instituições sem precedentes na história do Brasil.
— A investigação é complexa. Envolve muitas pessoas, plataformas, financiadores, autores intelectuais. Para o bem da apuração, é natural que haja conexão entre as análises dos inquéritos. A informação de um esclarece a dúvida do outro. Não faz sentido perder a noção do todo. Mas, de fato, quando se vê o conjunto, há sensação de concentração excessiva de poder nas mãos do Moraes. A lógica da democracia é evitar a concentração — reflete.
Ele avalia que somente após a conclusão dos inquéritos será possível fazer melhor juízo sobre a adequação do método.
— O país está aprendendo. Não há precedente histórico para sabermos se está correto ou não. Quando o conjunto probatório for visível para a sociedade, essa avaliação poderá ser feita —diz Palma de Jorge.
O longo tempo de duração dos inquéritos — o das fake news tem mais de cinco anos — é outro ponto delicado.
— À medida que o fatos vão acontecendo, com novos ataques, os inquéritos ainda se justificam, mas não podem ser eternos. A delação do Mauro Cid (aberta) é um equívoco, já deveria ter terminado. Alguns crimes pequenos, por exemplo, podem até acabar prescrevendo conforme o tempo vai passando — alerta Streck.
Palma de Jorge considera como "legítima" a crítica sobre o prolongamento.
— Os prazos são uma garantia do Estado de Direito. Investigação aberta para sempre não é boa, mas o que tem acontecido é que a realidade bate à porta, trazendo uma série de eventos que vão sendo revelados e acabam contribuindo para a manutenção das investigações.
Protagonismo do STF como problema estrutural
Ex-procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, professor emérito da PUCRS e doutor em Direito, Sergio Porto entende que o motivo da crise do STF antecede o inquérito das fake news. Ele avalia que a desconfiança decorre do comportamento dos magistrados.
— Pela primeira vez na vida, vejo um STF em que alguns membros expressam opiniões publicamente e assumem comportamento protagonista, quase no sentido partidário. Isso não existia no passado. Os ministros eram muito discretos. O momento que vivemos contribui para que se fique pensando se as decisões estão inspiradas em convicções políticas ou jurídicas — diz Porto.
Ele considera que a questão é estrutural e que a isonomia é o maior patrimônio do Judiciário:
— Entendo que temos de tirar o STF de Brasília para que ele não viva num clima incestuoso com os demais poderes. Na Alemanha, a suprema corte não é na Capital. Brasília todo dia tem compromisso social em que se encontram os magistrados, os presidentes, os ministros de Estado. E, depois, o STF tem de julgar essas pessoas. Não é uma boa convivência.
Para outros analistas, o protagonismo atual decorre de aspectos como a evolução das mídias sociais, a transmissão das sessões da Corte ao vivo e a judicialização da política. Quando um tema carece de consenso no Congresso, sempre há quem busque solução jurídica. Uma parcela avalia que a realidade da ameaça falou mais alto.
— Aumentam os ataques, aumentam os mecanismos de defesa das instituições. Não passamos por uma tentativa de furto de supermercado. Foi uma tentativa de golpe de Estado. E isso fez o STF reagir. Não há dúvida de que salvou a democracia brasileira —afirma Streck.
A reportagem questionou a Suprema Corte sobre os temas debatidos, mas não houve resposta até o horário da publicação.