O segundo dia do julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que analisa uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) que pode tornar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) inelegível pelos próximos oito anos foi encerrado por volta das 22h desta terça-feira (27). A sessão foi dedicada exclusivamente à manifestação do relator do caso, ministro Benedito Gonçalves, que votou por tornar o ex-presidente impedido de concorrer até 2030.
O julgamento retorna na quinta-feira (29), a partir das 9h, com os votos dos outros ministros. Votam, em sequência, Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia, Nunes Marques e, por último, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes.
O motivo dessa ação é o discurso que Bolsonaro fez durante uma reunião com cerca de 70 embaixadores no dia 18 de julho de 2022. Na ocasião, o então presidente apresentou slides em inglês com erros de grafia e disse que o sistema eleitoral brasileiro é falho.
Para Benedito Gonçalves, que decidiu por absolver o ex-vice-presidente Walter Braga Netto, Bolsonaro foi "integralmente responsável" pela reunião, uma vez que o material da apresentação feita aos embaixadores não teve a participação de ministérios, como o das Relações Exteriores e a Casa Civil. E ressaltou que os custos do evento, de R$ 12 mil, não refletem a "inteireza dos recursos públicos empregados".
— O valor (da reunião) nem mesmo se estima em dinheiro, maior destaque está na solenidade. O convite (aos embaixadores) não indicava assunto da reunião, e representantes diplomáticos assistiram, por mais de uma hora, a uma apresentação que envolvia elogio do mandatário a si mesmo, ataque hacker ao TSE, críticas à atuação de servidores públicos, ilações a respeito de ministros deste tribunal, exaltação à atuação das Forças Armadas e exaltação do voto impresso recusado pelo Congresso — destacou.
Em sua análise, o relator rebateu os argumentos da defesa do ex-presidente a respeito da natureza da reunião e pontuou que toda comunicação busca influenciar o meio:
— A reunião, portanto, teve finalidade eleitoral, mirando influenciar o eleitorado e a opinião pública nacional e internacional. Com uso da estrutura pública e das prerrogativas do cargo de presidente da República, foi contaminado por desvio de finalidade em favor da candidatura da chapa investigada.
Menção às Forças Armadas
Em sua fala, que durou cerca de três horas, Benedito Gonçalves, mencionou as Forças Armadas, afirmando que tiveram "papel central" na estratégia do ex-presidente Jair Bolsonaro de "confrontar" a Corte Eleitoral. Destacou trechos da reunião com embaixadores em que o então presidente citou os militares, demonstrando ideias antidemocráticas.
— Mencionou as Forças Armadas 18 vezes. A palavra democracia apareceu apenas quatro vezes e, em nenhuma delas, foi reconhecida como valor associado ao processo eleitoral — destacou Gonçalves. — Um significativo componente retórico é o uso da primeira pessoa do plural para se referir às Forças Armadas. O primeiro investigado (Bolsonaro) enxergava-se como um militar em exercício à frente das tropas. Passagens deixavam entrever um preocupante descaso em relação à conquista democrática que é a sujeição do poderio militar brasileiro à autoridade civil democraticamente eleita — acrescentou o ministro, para quem o discurso insinuava uma "perturbadora interpretação das ideias de autoridade".
Mais cedo, o ministro também destacou que palavras e discursos podem causar danos à democracia.
— Não é possível fechar os olhos para os efeitos de discursos antidemocráticos. Já assinalamos que fatos inverídicos justificam direitos de respostas, nas campanhas eleitorais. Da mesma maneira, divulgação de notícias falsas é capaz de vulnerar bens políticos e eleitorais — disse o relator, que incluiu no voto apontamentos conceituais sobre fake news e dados que dimensionam a "gravidade" dos discursos contra democracia.
Inclusão da minuta do golpe
Gonçalves ainda rejeitou pedido da defesa de Bolsonaro para desconsiderar a minuta do golpe no processo, discordando da argumentação dos advogados do ex-presidente, de que o documento não poderia ter sido anexado ao processo porque diz respeito a fato posterior à eleição. A defesa lembrou que o TSE negou a inclusão de delações premiadas da Operação Lava-Jato nos autos da ação que pedia a cassação da chapa Dilma-Temer. Para o relator, no entanto, as situações são diferentes. Ele ponderou que a minuta do golpe tem relação direta com a ação contra Bolsonaro, ao contrário das delações premiadas que citavam as campanhas de dos ex-presidentes Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB) em 2014. Segundo a análise de Gonçalves, o documento é "golpismo em sua essência".
— Ao alcance do ministro da Justiça (à época, Anderson Torres, na casa de quem a minuta foi encontrada), um documento permitia visualizar formas jurídicas que poderiam ser utilizadas para responder aos contínuos reclames do primeiro investigado de que algo precisava ser feito para impedir o êxito da suposta manipulação de resultados de 2022 — justificou o magistrado.
Primeiro dia teve sustentação das partes
Na quinta-feira passada (22), ocorreu a primeira parte do julgamento, na qual o relator leu o relatório e os advogados de acusação e de defesa fizeram suas sustentações orais. Paulo Gustavo Gonet, vice-procurador-geral Eleitoral, também manifestou seu parecer e pediu a inelegibilidade do ex-presidente.
A inelegibilidade é o nome dado à suspensão dos direitos políticos pelo prazo de oito anos e é a sanção máxima do âmbito da Justiça Eleitoral. Neste momento, Bolsonaro responde a 21 AIJEs no TSE, mas a que está na pauta foi proposta pelo PDT três dias depois do começo da campanha de 2022.
O vídeo com a apresentação do ex-presidente aos embaixadores foi retirado do ar — tanto dos canais oficiais quanto dos de Bolsonaro — por ordem da Justiça Eleitoral. O ex-mandatário também disse que hackers ficaram oito meses dentro do TSE, quando teriam acessado a senha de um dos ministros da Corte, e afirmou que as eleições do Brasil contam com um sistema "completamente vulnerável".
O ataque às urnas foi um dos motes de Bolsonaro durante a campanha. Por isso, o discurso do dia 18 de julho foi interpretado pelos seus opositores como um gesto de antecipação de propaganda eleitoral. Essa questão foi tratada no bojo de quatro representações eleitorais analisadas conjuntamente, sob relatoria de Alexandre de Moraes. Bolsonaro foi condenado a pagar uma multa de R$ 20 mil pelo que a Justiça entendeu ser propaganda antecipada.
Paralelo a isso, na AIJE proposta pelo PDT e que vai a plenário, o objetivo do processo é um horizonte mais distante: investigar se, na situação, houve abuso de poder político, econômico ou no uso dos meios de comunicação.
O PDT acusa Bolsonaro de ter usado estruturas de governo — a posição de presidente, a prerrogativa de discursar a diplomatas do mundo todo, a transmissão do seu discurso por meio de canais de imprensa oficial — para reverberar esse discurso, interpretado um ato típico de campanha. Nisso estariam, segundo o PDT, o abuso de poder político e dos meios de comunicação — pois, se Bolsonaro não fosse presidente, não teria condições de dar a mesma repercussão ao seu discurso.
Para PGR, não há crime
A mesma circunstância que vai ser analisada pelo TSE foi alvo de um pedido de investigação direcionado ao Supremo Tribunal Federal (STF), feito por um grupo de partidos — PT, PSOL, PV, PSB e PDT. Em março deste ano, a Procuradoria-Geral da República pediu o arquivamento dos autos, por entender não visualizar indício de crime. A manifestação ainda não foi analisada por Luiz Fux, que é relator do caso.
Investigações na Polícia Federal
Bolsonaro acumula investigações na Polícia Federal (PF) por atos cometidos durante a sua campanha. O caso das joias que ganhou de presente do governo da Arábia Saudita, a suposta fraude no seu cartão de vacinação, o 8 de Janeiro e a troca no comando da PF são algumas das investigações que pairam sobre o ex-presidente.
Como é de praxe nos inquéritos judiciais, há sempre uma autoridade do Poder Judiciário acompanhando a investigação e autorizando diligências, como a condução coercitiva e a busca e apreensão. No caso de Bolsonaro, seis inquéritos são acompanhados pelo STF, todos sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
Se essas investigações apontarem para a prática de crimes, o Ministério Público ofertará uma denúncia, petição que dá início ao processo penal. A partir desse gesto, Bolsonaro terá direito a todas as etapas da ampla defesa e do contraditório, bem como a recorrer até as últimas instâncias. Apenas com uma condenação criminal transitada em julgado (sem possibilidade de recurso) ele perde os direitos políticos.
O que mais pesa contra Bolsonaro
Bolsonaro é réu em apenas dois processos criminais, relacionados ao episódio no qual disse que a deputada Maria do Rosário (PT-RS) não "merecia" ser estuprada.
Na Justiça Federal do Distrito Federal, ele responde a uma ação de improbidade administrativa, pelo caso da "Wal do Açaí", suposta funcionária fantasma de seu gabinete. Também há uma ação civil pública na Justiça Estadual do DF, na qual Bolsonaro é acusado de usar imagens de menores de idade em propaganda eleitoral.