Com 1,2 milhão de solicitações encaminhadas à União em pouco mais de uma década de existência, mas sob críticas de retrocessos, a gestão federal da Lei de Acesso à Informação (LAI) enfrenta um momento decisivo para recuperar a credibilidade e avançar rumo a uma maior transparência governamental.
Na avaliação de especialistas, ações recentes como a banalização da imposição de sigilos de até cem anos e o abuso da proteção de dados individuais de pessoas ligadas ao setor público precisam ser revertidas para atender ao espírito da legislação que entrou em vigor em 2012. Barreiras impostas ao acesso popular a órgãos do governo faz com que, pela estatística oficial, cerca de 30% dos pedidos sejam recusados por diferentes razões — mas essa cifra pode ser bem maior na prática. Após tomar posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se comprometeu a implementar melhorias.
A LAI regulamenta o direito constitucional do cidadão brasileiro de acessar informações dos três poderes de municípios, Estados e União. A legislação prevê que qualquer pessoa, sem necessidade de justificativa, possa pedir e ter acesso aos dados públicos — com exceções que envolvam, por exemplo, privacidade pessoal ou risco à segurança. Especialistas afirmam que, desde sua criação, a norma é afetada por problemas como interpretações muito restritivas, carências de estrutura ou pessoal e brechas legais que acabam por criar barreiras ao interesse da sociedade. Essas queixas ganharam volume nos últimos anos.
— Há uma confusão que vem sendo feita a respeito do direito à privacidade. Não é responsabilidade apenas do governo Bolsonaro, já que se trata de uma discussão global. Mas, desde que foi sancionada no Brasil a Lei Geral de Proteção de Dados, em 2018, a gestão anterior exagerou nessa proteção sob o pretexto de resguardar a intimidade e a privacidade. Só que existem dados pessoais que são de interesse público, a exemplo dos salários de servidores — diz o pesquisador da Universidade de Lausanne (Suíça) e doutorando em Administração Pública pela Escola de Administração da Fundação Getulio Vargas (FGV) Fabiano Angélico, autor do livro Lei de Acesso à Informação: Reforço ao Controle Democrático.
Sob Jair Bolsonaro, foi ampliado o universo de funcionários públicos com autoridade para impor segredos, e uma interpretação criticada por analistas disseminou a aplicação de sigilos de um século.
— Tecnicamente, não há sigilo de cem anos (no texto da LAI). Tem referência a dados pessoais de interesse público. A lei diz que essas informações podem ficar restritas por, no máximo, até cem anos. Foi feita uma certa confusão em relação a isso — afirma Angélico.
Não é fácil perceber o impacto dessas medidas com base só nos números oficiais por diferentes motivos. O painel de monitoramento da Controladoria-Geral da União (CGU) indica, por exemplo, queda nas solicitações feitas a partir de 2020, quando teriam recuado de 153 mil para 119 mil em 2021. Porém, a variação se deve a uma mudança de plataforma digital que passou a desconsiderar demandas que antes eram contabilizadas, mas acabavam redirecionadas a ouvidorias por não serem entendidas como requisições, mas críticas ou outras manifestações.
Outro problema nas estatísticas não permite ver com clareza os obstáculos que se acumularam nos últimos anos. Dados do governo indicam que a média de pedidos atendidos tem oscilado ao redor de 70% ao longo dos anos — mas a proporção pode estar maquiada. Em avaliação independente, a ONG Transparência Brasil apurou que, de janeiro de 2021 a agosto de 2022, 20% de amostra de 48,5 mil pedidos encaminhados a órgãos federais foram classificados como "respondidos" quando, na verdade, não entregaram a informação desejada pelos cidadãos. Por isso, as tentativas recentes de minar a supervisão social sobre ações de governo nem sempre transparecem nos painéis de controle.
Outra coisa que vem atrapalhando, nos últimos tempos, são dados errados fornecidos pelo governo
MARIA VITÓRIA RAMOS
Diretora da Fiquem Sabendo
— Há muitas respostas que não são bem classificadas. Também percebemos aumento nos casos de resposta parcial (em que somente uma fração do que foi pedido é divulgado) — afirma a diretora de Programas da Transparência Brasil, Marina Atoji.
O atendimento parcial costumava ficar ao redor de 3% nos primeiros anos em que a lei entrou em vigor. No ano passado, estava em quase 6%. Marina diz que o trabalho diário para desfazer os segredos oficiais permite montar um cenário mais fiel da realidade atual:
— Se multiplicaram imposições de sigilos desnecessários, houve queda na qualidade das respostas fornecidas, assim como na qualidade da transparência ativa (informações disponibilizadas de antemão à sociedade, sem necessidade de solicitação). Dados abertos de compras do governo federal, por exemplo, deixaram de ser colocados no portal (de transparência), dificultando o andamento de projetos que temos. Houve a retirada de dados do ar com justificativas esdrúxulas, várias tentativas de esconder ou de retirar dados sobre a pandemia.
Além disso, os solicitantes deparam muitas vezes com informações falsas.
— Outra coisa que vem atrapalhando muito, nos últimos tempos, são dados errados fornecidos pelo governo. Recebemos, por exemplo, planilhas com o número de armas apreendidas que, de última hora, nos avisaram que não era o que havia sido comunicado. Além de uma série de outras medidas, é preciso que seja reforçado o trabalho de revisão, ou vai se criando uma desconfiança — acrescenta a cofundadora e diretora executiva da agência Fiquem Sabendo, Maria Vitória Ramos.
Lula prometeu reforçar a aplicação da LAI, mas Marina observa que também houve déficit de transparência na largada desse processo:
— O presidente Lula disse que seria feita a revisão dos sigilos impostos pelo antecessor. Mas isso deve ser feito de forma igualmente transparente, e, até o momento, não sabemos como isso está sendo feito, que critérios estão sendo usados, o que já foi revisto e o que ainda falta fazer.
Nesta sexta-feira (3), a CGU divulgou em coletiva de imprensa que vai reavaliar 234 sigilos aplicados nos últimos quatro anos. O órgão elaborou um parecer que vai orientar essa análise e estabeleceu ações e recomendações para aumentar a transparência no país, como a criação de um programa de capacitação sobre a LAI, promoção da lei junto a Estados e municípios, entre outras medidas.
Especialistas defendem melhorias em "transparência ativa"
Uma das frentes de batalha dos ativistas em benefício da Lei de Acesso à Informação é ampliar o nível de transparência ativa do governo federal.
Isso envolve a divulgação dos dados de interesse público em diferentes plataformas, com acesso fácil e simples entendimento, mesmo sem requisição — ou seja, deve-se oferecer o conteúdo antes mesmo de que seja formalmente solicitado.
O painel de monitoramento da Controladoria-Geral da União (CGU) aponta que, em média, a administração federal cumpre 71,6% de uma lista de itens que configuram a transparência ativa, enquanto 22,8% desses preceitos são descumpridos, e o restante é atendido de forma parcial.
É preciso ser mais enérgico na aplicação da lei
MARINA ATOJI
Diretora da Transparência Brasil
Entre os órgãos com maior adesão a esses princípios estão agências reguladoras nacionais como a de Aviação Civil (Anac), a de Saúde Suplementar (ANS), a de Transportes Aquaviários (Antaq) e a de Transportes Terrestres (ANTT). Na extremidade oposta, se encontram entidades como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Os líderes desse ranking cumprem na íntegra um rol de 49 conjuntos de informações que devem ser disponibilizadas de antemão, incluindo desde estrutura organizacional e competências até metas e resultados de programas, eventuais obras e investimentos, prestação de contas, demonstrações financeiras, dados de pessoal, entre outros itens. Já os piores colocados aparecem com somente um ponto atendido.
— É preciso ser mais enérgico na aplicação da lei. Mesmo nos governos anteriores, de Lula ou Dilma (Rousseff), já havia problemas de transparência ativa, como na publicação de dados abertos. Mas, agora, isso patinou, quando não regrediu. Quando estávamos começando a engrenar, está sendo preciso retomar o discurso sobre a importância da transparência — afirma a diretora de Programas da Transparência Brasil, Marina Atoji.
Oito medidas para aprimorar a LAI
Especialistas sugerem conjunto de iniciativas para ampliar acesso da população a informações públicas no âmbito federal
1) Preservação de informações
Sugerido pela agência de dados Fiquem Sabendo, um projeto de lei em tramitação procura assegurar que informações produzidas em uma gestão governamental anterior sejam preservadas na seguinte, além de conectar a Lei de Acesso à Informação (LAI) à Lei da Política Nacional de Arquivos Públicos, que determina obrigatoriedade de gestão e proteção de documentos por parte do poder público.
A agência também defende auditoria nos diferentes sistemas de informática, dispositivos e discos rígidos do governo federal , em especial da Presidência da República, para identificar registros, processos e documentos que tenham sido eventualmente apagados.
2) Mudança de cultura
Hoje ainda há resistências ao fundamento da LAI de que todo dado produzido pelo Estado brasileiro deve ser público — e apenas exceções muito bem justificadas podem ter sigilo. A administração federal, incluindo Presidência da República, Controladoria-Geral da União (CGU) e outros órgãos precisam reafirmar a interpretação de que o segredo deve ser a exceção, e não a regra, e criar uma cultura de transparência “transversal” que inclua todas as instâncias do governo. Isso pode ser feito por meio de manifestações públicas, orientações internas, medidas administrativas e nomeações de dirigentes alinhados a essa mentalidade.
3) Revisão de sigilos
Nos últimos anos, uma interpretação enviesada da lei levou à multiplicação de imposições de segredo a uma série de documentos — incluindo os “sigilos de cem anos” adotados ao longo da gestão Bolsonaro. Essa medida não é uma ferramenta prevista na LAI — que permite, na verdade, possibilidade de sigilo de, no máximo, até cem anos para certos dados pessoais de interesse público. Especialistas entendem que o uso desse recurso deve ser revisto, e os sigilos já decretados devem ser reanalisados. Essa medida já foi anunciada pelo atual governo, mas há um entendimento de que ainda falta transparência sobre como isso está sendo feito.
4) Transparência ativa
É preciso investir na oferta prévia das informações disponíveis, com acesso simplificado e clareza, utilizando preferencialmente a internet, mesmo sem a necessidade de o cidadão entrar com um pedido formal de acesso. É isso a que se chama de “transparência ativa”. Segundo dados do painel de monitoramento da LAI mantido pela CGU no último dia 31 de janeiro, os diferentes órgãos sob responsabilidade federal atendem, em média, a 71,6% dos requisitos de transparência ativa. Outros 5,6% são atendidos parcialmente, e 22,8% não são cumpridos.
5) Participação social
Incluir representantes da sociedade civil na Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CMRI), hoje formada apenas por integrantes do governo federal. Esse órgão colegiado atua como quarta e última instância para julgar recursos referentes a negativas de pedidos de acesso a informações. Suas atribuições também envolvem tratamento e classificação de informações sigilosas. As decisões da comissão também acabam criando precedentes para as outras instâncias de recursos, avalia a diretora de Programas da Transparência Brasil, Marina Atoji.
6) Arquivo Nacional
Essa entidade, entre outras atribuições, estabelece políticas sobre a guarda ou prazos para destruição de documentos que eventualmente venham a ser considerados sem valor. Nos últimos anos, decisões do Planalto também transferiu parte dessa prerrogativa para ministérios. O doutorando em Administração Pública pela FGV/SP Fabiano Angélico avalia que é preciso rever a recente politização do comando da entidade (a direção do órgão foi trocada no último dia 24) e recuperar uma maior centralização das decisões sobre preservação ou eliminação de documentos públicos.
7) Dados pessoais
Aperfeiçoar a regulamentação sobre proteção de dados pessoais a fim de deixar as regras mais claras e reduzir o risco de abusos na negativa de acesso a informações com base nessa legislação. A entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em 2020, levou a interpretações mais restritivas e consideradas equivocadas por especialistas em transparência, que perceberam um abuso na utilização dessa prerrogativa para recusar pedidos. Dados de acessos dos filhos do ex-presidente Jair Bolsonaro ao Planalto foram colocados sob sigilo de cem anos, por exemplo. A sugestão é que a legislação brasileira seja mais precisa ao definir exatamente que tipo de informação pessoal de agente público pode ser preservada, e em que condições.
8) Fortalecimento da CGU
Mesmo 10 anos após sancionada a lei nacional, de cada cinco municípios brasileiros, apenas um regulamentou a LAI. A agência de dados Fiquem Sabendo defende o fortalecimento da capacidade da CGU de aplicar sanções e a permissão para que a entidade possa atrelar o repasse de transferências voluntárias ao cumprimento de metas de transparência (por parte de outras esferas de governo) como a adesão a portais de transparência e publicação de bases de dados.