Decisão unânime do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional uma lei estadual de 2010 que permitiu a emancipação e instalação de novos municípios no Rio Grande do Sul. O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4711, movida pela Procuradoria-Geral da República (PGR), foi finalizado em 4 de setembro e a decisão acabou publicada na quarta-feira (8).
O entendimento do STF, segundo o relator Luís Roberto Barroso, foi de que “é inconstitucional lei estadual que permita a criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios sem a edição prévia das leis federais”, conforme previsão da Constituição.
O caso é complexo e partes interessadas ainda analisam a extensão dos efeitos. É provável que esclarecimentos pormenorizados dependerão de embargos declaratórios apresentados ao STF, instrumento que permite aclarar eventuais pontos obscuros de uma sentença.
Há dúvida entre as autoridades locais sobre o resultado prático da decisão. Se os efeitos da lei tornada inconstitucional forem cassados, existe o risco de 30 municípios gaúchos serem extintos, voltando a pertencer aos territórios originais. Contudo, a interpretação que ganha força é a de que Barroso apenas declarou a norma ilegal daqui para frente, sem cassar seus efeitos pretéritos, já que os municípios criados até 31 de dezembro de 2006 tiveram seus atos validados pela Emenda Constitucional 57/2008.
Na avaliação do deputado federal Pompeo de Mattos (PDT), um dos parlamentares que mais atuou na pauta emancipacionista nos anos 1990, três dezenas de cidades gaúchas correm o risco de serem extintas (veja a lista ao final). Isso as levaria a ter as administrações locais, como a prefeitura e a Câmara de Vereadores, desativadas. Tudo dependerá da aplicação prática da decisão de Barroso.
Tanto Pompeo quanto a Federação das Associações dos Municípios do RS (Famurs) acreditam que é possível manter a existência dos municípios. A decisão do STF é de caráter definitivo, com 10 votos favoráveis. Em tese, explicou a Corte, cabem apenas os embargos declaratórios, ferramenta que não se presta à rediscussão dos casos.
Para os municipalistas consultados, as cidades amparadas na Lei Complementar 13.587/2010, agora declarada inconstitucional, estão com sua vida administrativa assegurada pelo teor da Emenda Constitucional 57/2008. O texto dessa norma diz que ficariam validados “os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de municípios cuja lei tenha sido publicada até 31 de dezembro de 2006”.
— A minha interpretação é de que essa emenda vai salvar. Vamos entrar no STF questionando, já que a emenda garante a emancipação. Considero a decisão esdrúxula — protestou Pompeo.
O coordenador-geral da Famurs, Salmo Dias de Oliveira, manifesta convicção de que nenhum município será extinto.
— Nenhuma cidade vai deixar de existir porque os efeitos das leis estão mantidos. A lei foi considerada inconstitucional, mas os frutos dela serão mantidos para quem se emancipou até 31 de dezembro de 2006 — diz Oliveira.
O procurador-geral do Estado, Eduardo Cunha da Costa, tem o mesmo entendimento:
— O julgamento não tem a repercussão imaginada e não traz nenhuma alteração na situação dos municípios já criados.
No voto de Barroso, a existência e a validade da Emenda Constitucional 57/2008 são citadas para os municípios criados até 2006. O que cai é a legislação estadual de 2010. O argumento de Barroso é de que não havia norma federal autorizando as emancipações, o que deveria ter sido feito por uma lei complementar federal, e não estadual. Por isso, o ministro, amplamente acompanhado por seus pares, afirmou que “o Congresso Nacional ainda não concluiu o processo legislativo pertinente”.
Na avaliação do advogado Roger Fischer, com atuação em tribunais superiores, teria faltado à Câmara e ao Senado aprovar a lei complementar que regraria a criação de municípios após o período abarcado pela Emenda Constitucional 57/2008.
“Desse modo, pendente a legislação federal que discipline o período no qual será autorizada a criação e alteração de municípios e os requisitos indispensáveis (...), são inadmissíveis os regramentos estaduais que possibilitem o surgimento de novos entes locais e invadam a competência da União Federal para disciplinar o tema”, sentenciou Barroso.
Na decisão, ele não cita situações específicas de municípios criados a partir da legislação declarada inconstitucional, tampouco informa se algum deles deverá deixar de existir ou se sua continuidade está assegurada. O ministro, em seu voto, faz exclusivamente a discussão acerca das leis e da constitucionalidade, sem ingressar no mérito das emancipações. Na fundamentação, faz breve menção ao fato de que houve proliferação de milhares de municípios no Brasil a partir dos anos 1990, alguns deles pequenos demais e com arrecadação insuficiente.
Dos 30 municípios listados como potenciais atingidos, 29 deles foram instalados em 1992 e 1996, diz a Famurs. Isso ocorreu com base em leis daquela época que, posteriormente, foram substituídas pela norma de 2010, agora declarada inconstitucional. Na decisão, Barroso destacou que os regramentos que precederam a norma ilegal não devem voltar a ter validade.
Essas 29 cidades instaladas em 1992 e 1996 estariam plenamente asseguradas, entende a Famurs, por estarem abarcadas e serem anteriores ao marco temporal da Emenda Constitucional 57/2008.
Um caso mais delicado poderá ser o de Pinto Bandeira, último município gaúcho a ser criado. A atual instalação aconteceu em janeiro de 2013. A primeira instalação de Pinto Bandeira ocorreu em 2001, mas isso perdurou somente até 2003. A suspensão veio após uma ação movida pelo PP de Bento Gonçalves, que não aceitava a emancipação do território.
Na próxima quarta-feira (15), a Famurs irá promover uma reunião com os prefeitos das 30 cidades potencialmente atingidas para discutir a situação e definir os termos dos prováveis embargos declaratórios que serão apresentados ao STF.
Entenda a polêmica
- O STF declarou, na quarta-feira, inconstitucional lei gaúcha de 2010 que permitiu a emancipação e a instalação de municípios no Rio Grande do Sul
- Essa legislação agora anulada substituiu, a partir de 2010, outras normas mais antigas que validavam a existência de 29 prefeituras instaladas em 1992 e 1996
- Os efeitos da decisão do STF não são claros, mas Famurs e PGE afirmam não haver risco de extinção dos municípios e retorno à condição de distrito em razão de uma emenda constitucional de 2008. Políticos preparam recurso ao STF para esclarecer a sentença
- A Emenda Constitucional 57/2008 amparou a legalidade dos municípios criados até 31 de dezembro de 2006. Ou seja, as 29 prefeituras gaúchas estão reconhecidas por esse dispositivo
- Apenas uma cidade no RS, Pinto Bandeira, tem situação diferente. O município foi instalado em janeiro de 2013. Famurs argumenta que a localidade está abrigada na emenda constitucional porque sua emancipação é resultado de discussão judicial iniciada em 2001
“Não vamos perder essa batalha”, diz prefeito de Pinto Bandeira
Localizado na Serra, Pinto Bandeira é o município gaúcho emancipado mais tardiamente, com sua atual instalação datada de janeiro de 2013. Sua criação, desta forma, se deu após 31 de dezembro de 2006, marco temporal regularizado pela Emenda Constitucional 57/2008.
Isso abre avaliações de que a cidade pode ser prejudicada, embora a Famurs entenda que, na longa discussão judicial em que se envolveu desde 2001, Pinto Bandeira acabou tendo sua existência atrelada à emenda em outra ação judicial finalizada em 2010, também no STF. Foi nesse ano que a cidade retomou seu direito de emancipação, com realização de eleição em 2012 e instalação em 2013, junto da posse do prefeito e vereadores.
Para o atual chefe do Executivo da cidade, Hadair Ferrari, a hipótese de deixar de existir significa um retrocesso para a região.
— Vamos ter de nos mexer. Não vamos perder essa batalha, tem luz no fim do túnel. Nossa procuradoria entende que estamos assegurados. Se tivermos de voltar para Bento Gonçalves, tudo vai parar de novo. Bento é muito grande e não conseguirá fazer muita coisa por nós. Já tem muita coisa para fazer por lá — diz Ferrari.
Ele destaca que 20% da arrecadação do município de 3.068 habitantes é destinada a investimentos e que os serviços públicos tornaram-se mais eficientes e próximos do cidadão local com a administração própria. Entre 2017 e 2020, diz o prefeito, foram asfaltados 8,4 quilômetros de estradas do interior do município com verbas próprias. Na cidade, comenta, está sendo finalizado um posto de saúde de 750 metros quadrados e a estrutura de creches têm capacidade para atender mais de cem crianças. Pinto Bandeira é baseada na agricultura: são colhidos, por ano, aproximadamente 40 milhões de quilos de uvas viníferas e 22 milhões de quilos de pêssego de mesa.
— A nossa posição é em defesa do municipalismo. Estamos em contato e à disposição de Pinto Bandeira. Para nós, qualquer extinção será um retrocesso. São municípios já estruturados, com atendimento de saúde, educação, infraestrutura e assistência social e agrícola — avalia Eduardo Bonotto, presidente da Famurs e prefeito de São Borja.
Veja a lista dos 30 municípios possivelmente atingidos:
Almirante Tamandaré do Sul, Arroio do Padre, Boa Vista do Cadeado, Boa Vista do Incra, Bozano, Capão Bonito do Sul, Capão do Cipó, Coronel Pilar, Cruzaltense, Itati, Mato Queimado, Pinhal da Serra, Pinto Bandeira, Rolador, Santa Margarida do Sul, São José do Sul, São Pedro das Missões, Westfália, Canudos do Vale, Forquetinha, Jacuizinho, Lagoa Bonita do Sul, Novo Xingu, Pedras Altas, Quatro Irmãos, Paulo Bento, Santa Cecília do Sul, Tio Hugo, Coqueiro Baixo e Aceguá.